A Arca
Quando o primeiro cação apareceu na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, chovia ininterruptamente há 48 dias. O Deus Me Deu, barco de madeira com capacidade para dois passageiros, revestido por tinta a óleo pintado em tiras vermelhas, verdes e brancas, passou a maior parte de sua vida sobre cascudos, tartarugas e jacarés. Vez por outra, Eustáquio, pipoqueiro de quinta a domingo no centro da cidade e pescador amador há 30 anos, puxava na linha um piau ou timboré. Mas era a primeira vez que um peixe de água salgada subia a bordo.
O exemplar de 4,6 kg era uma fêmea jovem. Coube ao departamento de Biologia da UFMG dar o laudo científico. O fenômeno, diziam os pesquisadores, era uma brincadeira de algum viajante voltando das férias em Cabo Frio ou Marataízes. Um fato isolado que não se repetiria. Mas repetiu-se.
Seis meses depois, quando os ataques de pequenos tubarões já haviam vitimado oito cidadãos da capital do Estado de Minas Gerais, localizada a 440 quilômetros da praia mais próxima, ficou claro que nada daquilo tinha graça. A mudança dizimou a população de jacarés, mudando permanentemente a ictiofauna do lago artificial, mas era tarde demais para qualquer alerta da prefeitura.
O sinal de internet saíra do ar há quase 40 dias, a energia elétrica era raridade, fruto de algum gerador que resistia. Os veículos estavam parados pelas ruas sem pneus ou isolamento entre o metal e o vidro. Os termômetros ainda em funcionamento, todos na escala Celsius, marcavam 5 graus negativos durante a noite, e não passavam dos 15 graus às 15h, hora mais quente do dia.
O mar avançava dia a dia morro acima. Rio de Janeiro, a baixada fluminense, praticamente todo o estado do Espírito Santo e os estados do Sul já estavam sob a água. Os poucos que conseguiam escapar da fúria das ondas se jogaram na água dos rios que corriam no sentido reverso ao natural, empurrados por marés imprevisíveis, ou sucumbiram à hipotermia.
A bacia amazônica havia sido completamente inundada, assim como a do Prata e todo o ecossistema do Pantanal. Em menos de 60 dias a população da América Latina caíra pela metade com o fim de Buenos Aires, Caracas e da maioria das capitais dos estados brasileiros.
Uma semana antes da pescaria inusitada que o levou a buscar a Universidade, Eustáquio havia lido uma reportagem que chamou sua atenção. Foi a última que recortou das páginas do Super, tablóide que costumava ganhar no ponto de ônibus onde aguardava para ir ao trabalho.
Dizia o texto:
Expedição no Pacífico identifica bactéria que decompõe plástico
Cientistas americanos, japoneses, chilenos e australianos isolam forma de vida capaz de digerir subprodutos de petróleo; ambientalistas celebram feito Da Redação (com agências)
Um grupo de cientistas conseguiu isolar uma bactéria capaz de digerir plástico, borracha e outros materiais derivados do petróleo. A descoberta foi comemorada por ambientalistas de diversas partes do mundo, e foi publicada na edição desta semana da revista Nature, uma das mais importantes publicações científicas no planeta. A novidade é tratada como uma possível solução para a redução drástica do lixo gerado nas grandes cidades.
De acordo com a publicação, a forma de vida foi identificada no último mês de maio, no Oceano Pacífico. O grupo, um consórcio internacional liderado por cientistas da Caltech (California Institute of Technology, nos EUA), isolou em laboratório um microrganismo batizado staphilococcus pacifiensis.
A nova bactéria é capaz de consumir polímeros complexos, gerando como subproduto água (H2O), ozônio (O3) e quantidades pequenas de grafite (isótopos do CO2), e não gás carbônico, como é mais comum nos processos de fermentação e decomposição de polímeros fósseis. As primeiras colônias foram encontradas em uma ilha de detritos plásticos que se formou entre o Japão e a Austrália, e surpreenderam os cientistas pela capacidade de suportar salinidade da água e variações extremas de temperatura e pressão.
O processo foi comemorado pela equipe que patenteou, nos Estados Unidos, uma forma de comercializar colônias para governos de países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos e no Japão, foram feitos testes em unidades de processamento de lixo, e os resultados, de acordo com o estudo divulgado, são animadores.
“Conseguimos reduzir em até 96% o volume de embalagens plásticas dos galpões teste. Os subprodutos gerados pela digestão do plástico são água, ozônio e grafite, o que nos deixou bem animados com as aplicações imediatas”, comemora Leonard Hoff-Davidson, chefe do estudo. A intenção, afirma, é que nos próximos três meses sejam feitos testes em todos os continentes.
Para o diretor-executivo da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN na sigla em inglês) Moahandas Ganneshnaya, os estudos são promissores, e podem levar os países signatários do protocolo de Paris a atingirem suas metas até cinco anos antes do previsto. O cientista, que liderou o painel intergovernamental sobre aquecimento global durante 12 anos, alerta, no entanto, para o otimismo excessivo. “Ainda não temos estudos sólidos sobre as reais características desse microrganismo, nem para sua aplicação em grande escala”, afirma.]
***
Aos 53 anos, Eustáquio ainda vivia só.
O garoto-prodígio da escola pública que recebeu bolsa de estudos para cursar biotecnologia na Alemanha aos 14 anos voltara para um Brasil em crise. Os cortes de verbas para ensino, pesquisa e extensão no início dos anos 10, seguido do golpe pentecostal no início dos anos 20 tornaram o país terra perigosa para quem era diferente.
Ser professor universitário negro, gay e morador de um bairro de classe média baixa na região metropolitana de uma capital com 5 milhões de habitantes, naquela época, era equivalente a andar com um alvo nas costas. Eustáquio aprendeu a sobreviver com o que tinha.
Após a reeleição do filho do fundador da maior igreja evangélica do país, naquele que entrou para a história como o pleito mais violento desde a independência do Brasil, Eustáquio pediu exoneração da faculdade. Sabia que a denúncia seria uma questão de meses. Talvez semanas.
Com o dinheiro do acerto, descontadas as dívidas feitas durante o doutorado na Europa, comprou o carrinho de pipoca de onde tirava o sustento. E o barco, seu lazer na BH dos anos 30. A casa herdou da avó, a única parente que realmente conheceu, com quem conviveu até ir estudar.
Três décadas de medo tornaram Eustáquio um homem prático e silencioso. Com os vizinhos assuntava sobre os afazeres da pequena plantação e da criação de galinhas malhadas do terreiro, sombreado pelos prédios ao redor.
A horta era um milagre. Gostava de comer os tomatinhos e as couves e de provar o mel de jataí que aprendeu a cultivar. Bom dia, boa tarde, boa noite e só. Para companhia contava com uma prima, a quem visitava duas ou três vezes no ano, e os jacarés da lagoa da Pampulha, onde passava as tardes de segunda e terça-feira, pescando e pensando.
A lembrança mais querida era o Carnaval do ano em que apresentou sua tese de doutorado. Quando ainda era possível ser festivo. Madrugou na Rua dos Guaicurus, no Centro, e conseguiu uma vaguinha tocando tamborim no tradicional Bloco Então Brilha!, o melhor daquele mundo. Cantou, bebeu catuaba, experimentou maconha, beijou desconhecidos, foi feliz.
Na quinta-feira seguinte, começou a dar aulas, mas o que foi bom durou pouco e Eustáquio se lembrava daquele tempo, agora, como se tivesse vivido aquele Carnaval em fevereiro duas encarnações atrás.
Apeou do barco o segundo cação em menos de 30 dias. Enquanto se dirigia ao departamento de Biologia da UFMG, a menos de um quilômetro da prainha suja de lama onde deixava encostado seu barquinho, ouviu no rádio a seguinte notícia:
“BH promete fim de montanhas de lixo após Carnaval”.
Em tom cordial e um pouco animado, no radinho do telefone, o locutor da Super FM lia o seguinte texto:
Prefeitura de Belo Horizonte promete zerar o lixo produzido durante o Carnaval deste ano em Belo Horizonte
A Prefeitura de Belo Horizonte vai zerar o lixo produzido durante as festividades de Carnaval em Belo Horizonte neste ano.
Quem garante é o secretário municipal do Meio Ambiente, o pastor Fred Biondini, que foi aos Estados Unidos em dezembro conhecer a novidade, criada por uma universidade da Califórnia.
Segundo ele, uma colônia de bactérias desenvolvidas especialmente para a finalidade conseguirá reduzir garrafas plásticas, fantasias e confetes a praticamente zero.
“Vamos destinar um pátio especial para teste no Aterro Sanitário metropolitano. O objetivo é, num segundo momento, ampliar o uso da Come-lixo para todo o aterro, aumentando a vida útil do empreendimento em até 50 anos e reduzindo o custo para a população.”
Volta para o locutor:
“Agora é ver se funciona, não é mesmo, irmãos? Porque essa coisa do lixo no Carnaval, essa confusão que certos grupinhos aí na cidade ainda insistem em fazer, só com reza brava, não é mesmo? Deus nos livre! Agora o futebol…”
Eustáquio desligou o rádio.
***
Ao chegar no cubículo entre o Café Nice e a lanchonete da rede internacional de sanduíches, onde guardava seu carrinho de pipoca, na Praça Sete de Setembro, no Centro de Belo Horizonte, Eustáquio entendeu o que acontecera. Os pneus do carrinho de pipoca haviam se transformado em duas pequenas manchas de areia preta sob as rodas estaiadas de metal cromado.
Colocou na mochila todo o milho que restara, sal, açúcar, o bacon que fritava em migalhas para salpicar sobre os saquinhos, o tubo de leite condensado pela metade. Organizou tudo em latões metálicos de banha, jogou o mochilão nas costas, deu meia volta e retomou a caminhada. Gastaria mais 3 horas para chegar em casa a pé.
No caminho, parou para ler no vidro de uma banca do centro uma página de jornal do dia anterior. Foi a última vez que viu um jornal em papel. A manchete de O Tempo daquela quinta-feira trazia a notícia que mudaria tudo dali pra frente. O fim já tinha começado, e veio mais rápido do que qualquer especialista poderia ter previsto. Na Califórnia, já se procurava, com poucas esperanças, uma solução. Não houve tempo.
Aterro sanitário metropolitano será desativado até fim do ano
São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife também comemoram resultados com nova bactéria Come-lixo
Da Redação
O Aterro Sanitário da Região Metropolitana de Belo Horizonte terá, pelo menos, mais 100 anos de vida útil. A afirmação é do secretário de meio ambiente pastor Fred Biondini, que em entrevista coletiva afirmou se tratar de um efeito inesperado, mas positivo do teste realizado com o lixo no último Carnaval.
Segundo Biondini, a bactéria come-lixo, que inicialmente foi usada para degradar o plástico gerado durante os quatro dias de carnaval, teria se alastrado para fora do pátio destinado para o teste. Os microrganismos teriam aderido aos pneus de alguns caminhões de lixo. As peças tiveram que ser trocadas.
Como resultado, o volume de lixo aterrado no espaço, localizado em Sabará, na Região metropolitana, caiu pela primeira vez desde o início das suas operações, em 2007. O volume, que passava dos 30 milhões de metros cúbicos de lixo aterrado, agora está em cerca de 20 milhões de metros cúbicos.
Informações divulgadas nesta manhã pelo Ministério do Meio Ambiente, em Brasília, apontam que fenômenos parecidos foram constatados nos aterros sanitários de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Faltam informações confiáveis, mas as prefeituras de pelo menos outros 30 municípios relatam reduções nos volumes de seus aterros sanitários nos últimos dias.
Segundo o ministro do Meio Ambiente, apóstolo Ricardo Oliveira, o fenômeno deve ser comemorado. “Temos que dar graças a Deus pelo ocorrido. Durante anos nos preocupamos com o crescimento do lixo nas cidades e fizemos muito pouco. Agora, recebemos esse milagre. É um sinal divino de que estamos no caminho certo”, glorificou.
Logo abaixo, ao lado do anúncio da próxima geração de telefones celulares, o complemento da reportagem, que repercutiu pouco:
Ambientalistas questionam efeitos da come-lixo
A queda de 33% no volume de lixo do Aterro Sanitário em menos de 20 dias causou estranhamento na comunidade científica mineira. Para o professor Hermes Portugal, do Grupo de Estudos sobre Resíduos da Universidade Federal de Viçosa, é um fenômeno que tem que ser estudado a fundo.
“A decomposição de derivados de petróleo é um fenômeno recente e ainda muito pouco conhecido. Os subcompostos podem ser tóxicos, e as reações ainda são muito pouco conhecidas”, destaca o professor. “Podemos estar diante de uma mudança na humanidade. A urgência de se comercializar um produto, que na verdade é um ser vivo pouco estudado, deve ser questionada”, reclama.
Apesar de parte dos cientistas se mostrar cautelosa, ONGs de defesa do meio ambiente comemoram a descoberta. “Acreditamos em um planeta sem lixo. A natureza urge”, diz uma campanha lançada nesta quinta pelo Greenpeace. “Já estudamos muito, está na hora de agir”, diz a propaganda, disponível nas redes sociais.
***
Eustáquio entendeu que tinha pouco tempo. Apertou o passo, mas mesmo assim foi apanhado pelas chuvas torrenciais que despencavam sem aviso. O céu claro deu lugar ao cinza escuro, que se manteria sobre as cabeças dos que conseguiram sobreviver pelos próximos meses.
Durante os meses que permaneceu na Arca de Noé, como batizou mentalmente o barco que construiu no quintal de casa, Eustáquio teve tempo de repassar os últimos meses na terra como a conhecia. A ignorância e a escalada de violência que subiram junto com a maré ainda provocavam pesadelos no ex-professor e pipoqueiro, que despertava à noite com a testa suada, apesar do frio lá fora. Gastava horas do dia rememorando os sinais que haviam sido ignorados por todos, menos por ele. Assombrava-se.
No dia em que viu os pneus do seu carrinho de pipoca derretidos, ficou claro que a bactéria desenvolvida nos EUA para decompor derivados de petróleo havia se espalhado de maneira imprevista e descontrolada. Era a pior epidemia pela qual a humanidade passaria. Faltava informação concreta, que provavelmente as autoridades de alguns países dispunham. Mas o tempo era curto e a política das nações hegemônicas era a de tentar evitar o caos generalizado. Era exatamente o que ele também faria: ficar quieto.
Os primeiros apagões em Belo Horizonte aconteceram no bairro Capitão Eduardo, próximo à divisa com Sabará e vizinho ao aterro onde fora delimitada, dias antes, a área de testes da bactéria come-lixo. Em menos de uma semana, o vai-e-vem de caminhões, que circulavam por toda a região metropolitana, dispersou os microrganismos pelo asfalto.
Os buracos nas vias não eram novidade por ali. Nem os apagões em dias de chuva. Nem o roubo de pneus durante as madrugadas quentes. Nada chamou a atenção das autoridades, até que os bairros onde residiam os ricos foram atingidos, semanas depois. “Absurdo esse descaso da prefeitura”, reclamou a Associação de Moradores do Alto das Mangabeiras, composta principalmente por juízes, desembargadores e donos de empreiteiras que viviam por ali. Advogados e juízes da Associação dos Moradores do Bairro de Lourdes também expressaram sua indignação no sítio eletrônico e no jornal mural, colado no poste da pracinha central da vizinhança, a minúscula e super-policiada Praça Marília de Dirceu.
Enquanto os mais proeminentes cidadãos da capital procuravam seus umbigos em meio às barrigas salientes, nos fins do mundo, as calotas polares derretiam de baixo para cima. Os mais de 30 bilhões de galões de óleo do pré-sal se transformavam numa panela de pressão prestes a explodir na cara da Era da Informação, jogando a humanidade em uma nova era glacial. Os quase 8 bilhões
de consumidores que vagavam sobre a Terra naqueles dias seriam reduzidos a menos de 300 mil.
A inimiga invisível era a staphilococcus pacifiensis, criada em laboratório para deteriorar e resistir. No meio aéreo, precisava formar colônias diametrais antes de se tornar capaz de consumir o piche do asfalto, o pneu dos carros e os cabos que encapavam fios de telefone, cabos de fibra ótica e de energia elétrica, dentro e fora do solo.
Na água, no entanto, o comportamento era mais agressivo. Sem reportar às autoridades, os pesquisadores americanos que isolaram e melhoraram o exemplar em laboratório haviam sido imprudentes ao lançar, de volta, um galão com mais de 14 trilhões de bilhões de células viáveis no centro da ilha de lixo do Pacífico, meses antes. O frasco de 20 litros gerou catástrofes de proporções nunca antes vistas no planeta.
Levadas pelas águas, as bactérias aderiram inicialmente à pintura nas laterais de navios de carga, descascando a tinta em velocidade máxima, deixando no caminho placas vivas. As vias marítimas foram contaminadas e demorou pouco para que os navios petroleiros que saíam da Costa Oeste e do Alasca em direção ao Oriente Médio passassem pelo Canal do Panamá. A epidemia silenciosa passou despercebida nas duas primeiras semanas.
Quando encontraram as jazidas de petróleo cru, no entanto, as bactérias sintetizadas em laboratório já eram um terror irreversível. Na primeira grande explosão de bacia de exploração, a Venezuela foi devastada pelo primeiro tsunami visível a olho nu da Lua. Foi relatado pela estação espacial americana, que nunca recebeu uma resposta de como proceder dali pra frente.
Seis horas depois, uma forte explosão no Golfo do México gerou uma onda que encobriu todo o estado da Flórida e dizimou de vez a população das ilhas do Caribe, que jamais voltariam à superfície.
A terceira explosão, na Península Arábica, dois dias depois, abriu um buraco no que havia sido o Qatar e o tremor abriu de vez o canal de Suez. Foi a vez do já encoberto Mar Mediterrâneo receber a onda que varreu França, praticamente toda a Península Ibérica e a Croácia. O Saara submergiu em 24 horas. O continente africano sucumbiu em menos de uma semana. Quase um bilhão de pessoas morreram no grande tsunami que encobriu o centro sul da Índia e Bangladesh naqueles dias.
***
Poupado do terror das ondas de 500 metros que varriam cidades inteiras a mais de 200 quilômetros por hora, Eustáquio trancou o portão e se preparou para o pior. Dias antes, havia arrastado o barquinho de pesca da Lagoa da Pampulha até sua casa, um percurso de pouco mais de 3km, que o deixou exausto. A tinta a óleo estava parcialmente descascada. Raspou o máximo possível do lado de fora da casa e começou a fazer as modificações que julgava necessárias.
Nos dias que se seguiram, construiu sua Arca com as ferramentas que dispunha e a madeira de lei que apanhara em caçambas de lixo ao longo dos anos. Queria construir, na velhice, a casa de seus sonhos, mas os móveis centenários herdados da avó teriam outro uso.
O antigo barco virou uma espécie de apoio, onde guardou bem amarradas com tiras de couro as ferramentas em madeira e ferro que gostava de trabalhar. A cama de casal e o itajé de mais de 300 quilos de peroba do campo entalhada foram para a nave principal.
O trabalho de cerrar, lustrar e encaixar usando pregos de aço inox e resina vegetal foi fundamental. Trancou-se e se manteve o mais quieto possível enquanto o mundo que conhecia, lá fora, se desintegrava como o petróleo e o plástico que recobriam tudo.
Quando a água preta do esgoto invadiu o portão e começou a subir em direção à porta da frente, a leva de garotos que saquearam lojas no Centro em busca de televisores de 54 polegadas e telefones celulares de última geração já havia seguido em direção ao Planalto Central ou se afogara tentando. A primeira horda de ratos e baratas passou. E a segunda, com animais maiores, inclusive capivaras, também.
Faltavam dois detalhes para que a nau, até então apoiada em escoras de madeira, ganhasse o mundo. O lastro metálico de 3 metros abaixo do barco, que também serviria de leme, e as pequenas velas de tecido, que poderiam se inflar de acordo com a necessidade. De resto, tratava-se de uma embarcação pouco convencional.
O projeto era mais inspirado nos barcos salva-vidas de grandes cruzeiros marítimos da atualidade do que nas caravelas portuguesas que chegaram ao Brasil em 1500. O hexágono em madeira de lei era calafetado por dentro e por fora tinha 3 metros de diâmetro. Era maior que a sala-cozinha da casa de Eustáquio.
O leme central era a peça-chave para que continuasse flutuando de cabeça para cima. Eram três barras roscáveis feitas de aço inox maciço. Uma embaixo, onde se apoiava o lastro, uma do assoalho até o encaixe do que seria o teto da embarcação e uma terceira, que ficava presa no piso, e que poderia ser convertida na haste central de uma vela de navegação.
Dentro do engenho de madeira escura, os seis lados tinham pesos equivalentes para melhorar a estabilidade em águas turbulentas. Um dos lados tinha um sistema de terra e telas finas, onde foram acomodadas as plantas do quintal. Em seu lado oposto, foram acomodadas as 5 galinhas e o galo carijó batizado de Ronaldo, e os sacos de farinhas, grãos e sementes emlatões metálicos de banha que antes acumulavam de tudo na garagem.
Embarcou com 25 quilos de açúcar, 50 quilos de farinha de trigo, 50 quilos de farinha de milho, 30 quilos de aveia, duas redes de pesca, um jogo com quatro varas pequenas e anzóis dos mais variados tipos. Seis pés de tomate carregados, quatro pés de couves e jarras com sementes de cebolinha, salsinha, coentro, pimentão, berinjela, cenouras e beterrabas acomodadas sobre 75 quilos de terra rica e preta que escavou do seu quintal. Era seu peso. Na outra extremidade, construiu sua cama e uma cadeira confortável. E fez o baú das mantas e cobertores.
Acoplados ao mastro principal, o destilador de água salgada para potável, o astrolábio que resgatara durante a reforma do laboratório de uma escola particular da Zona Sul, quatro mapas das constelações, feitos em diferentes épocas, e uma dúzia de livros.
Nos dois lados restantes, amarrou com cintos de couro e cordas de fibra natural o antigo barco de pesca com todas as ferramentas que conseguiu recolher, um vidro grande de resina para calafetar possíveis infiltrações, madeira para reparo, pregos, um fogareiro de acampamento e quatro caixas grandes com álcool em gel, que garantiriam o calor necessário e a cocção de parte daquilo que levava a bordo com alguma segurança.
Quando a água chegou à plataforma, teve que mergulhar para encaixar o lastro amarrado em uma corda de sisal. Rosqueou a barra rapidamente, trabalho que treinou com ar nos pulmões pelo menos 50 vezes antes do dia do adeus, e conseguiu pular para dentro de sua nova moradia a tempo de ver o telhado da residência ancestral ser engolida definitivamente pelas águas cinzentas e geladas.
Há mais de seis meses chovia sem parar, e há 45 dias já não via ninguém. Buzinas, tiros e gritos de horror cessaram quase um mês antes e restara apenas o som das aves migrando para o Oeste. Subiu em um turbilhão lento e constante. Naquela noite, passou silenciosamente em frente ao grande rosto indígena da lateral do Edifício Acaiaca, já cheio de água e peixes pela metade. Preferiu não acender o fogo para não chamar a atenção de possíveis sobreviventes acampados nos prédios altos da Avenida Afonso Pena.
Quando a última pedra da Serra do Curral submergiu, dois dias depois, deixou correr uma lágrima, fez uma prece para a avó e para todos que haviam submergido e ligou pela primeira vez o fogareiro. A chuva sobre o barco abrandou pela primeira vez em semanas. Fez chá de erva-doce e comeu um ovo cozido, colhido horas antes.
***
Foi com assombro que os oceanógrafos da Universidade Federal de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, confirmaram as primeiras leituras de temperatura das águas profundas na região da Antártida, onde o governo brasileiro mantinha um ponto de estudos. As sondas distribuídas dos dois lados da América do Sul, tanto no Oceano Pacífico quanto o Atlântico, havia marcado temperaturas até 8 graus Celsius acima do normal para aquela época do ano.
O texto científico, que precisava de aprovação do Ministério da Ciência, Tecnologia, Educação Moral e Cívica, comandado pelo apóstolo Carlos Dilermano, nunca chegou a ser publicado. Entre as hipóteses levantadas pelo grupo de 18 cientistas, nove deles doutores em temas ligados à Oceanografia, estava o aquecimento da água como consequência do metabolismo de bactérias que se
proliferavam no fundo dos oceanos de maneira espantosamente rápida.
A conclusão chegou quase um mês antes da primeira explosão de reserva de petróleo. Mesmo se o estudo houvesse sido publicado, não haveria o que fazer. O estrago estava feito, sob os aplausos de grande parte dos filhos da Era da Informação.
O metabolismo das bactérias desenvolvidas na Califórnia era belo e assustador. Os carburetos eram digeridos em cadeias grandes, em reações exotérmicas que deterioravam não apenas plástico, borracha e outros materiais oriundos do petróleo, mas também a fina camada de derivados que recobria o leito dos mares.
Todo o plástico sintetizado no mundo ao longo de um século e meio transformou o contorno dos continentes em um agradável bufê para os microrganismos sintéticos. Sua reprodução, exponencial e pelo sistema de meiose, era possível em intervalos de aproximadamente 17 minutos. Nesse intervalo, uma única célula gerava duas, quatro, 16, 256, 65.536 e assim por diante.
A água esquentou de baixo para cima, derretendo parte do gelo do Pólo Norte e criando, entre os monumentais icebergs que se soltariam dali a meses, bolhas de ozônio. Juntas, elas ocupariam volumes equivalentes aos Montes Urais. As ondas magníficas criadas pelas explosões das reservas em alto mar racharam as geleiras, fazendo com que o gás acumulado ao longo de meses vazasse imediatamente para a atmosfera, dobrando a camada de ozônio da terra por quase cinco meses.
Todo o O3 que impediu que parte dos raios ultravioletas do sol chegasse à superfície voltaria à conformação mais comum no nosso planeta, O2. Os buracos da ionosfera, fruto da reação de outros gases poluentes, inclusive o metano oriundo das criações intensivas de gado, voltaram às proporções conhecidas pela vida nos últimos três milhões de anos. O sol voltaria a brilhar em breve, sobre um planeta praticamente submerso.
Com o fim do plástico dos mares e a exaustão das reservas petróleo acumuladas ao longo de eras sob camadas de rocha, o ciclo das bactérias também acabou. Sem alimento, parte dos microrganismos passou à forma de esporos. Desidratados, os seres engrossaram suas paredes celulares e se aglomeraram em pequenos grumos negros que, a olho nu, pareciam uma chuva de fuligem no mar.
Sem alimento, mais de 99% das colônias pereceriam ao longo do próximo século, e a Terra seguiria seu curso natural rumo ao equilíbrio ecológico. A microglaciação do começo do século XXI nunca chegou a ser descrita pelos humanos que resistiram como um fruto da intervenção humana, mas como o Grande Dilúvio. Outros 2500 anos seriam necessários para que a humanidade voltasse a compreender os fenômenos ópticos, e outros 370 para que a staphilococcus pacifiensis fosse observada em um microscópio e descrita de maneira científica. A nova sociedade, construída sobre a matriz energética solar, nunca passaria dos 2 bilhões de terráqueos.
O centro do desenvolvimento científico da nova humanidade se ergueria nos Andes, e Nova Kondor, anteriormente conhecida pelo nome de Lima, no que hoje se convém chamar de Peru, seria o centro do desenvolvimento científico mundial. Foi da estação Machu Picchu, na outra ponta da capital, que decolou a Libélula, espaçonave tripulada que descobriu, com assombro, que os humanos já haviam chegado, quase três mil anos antes, à superfície lunar. Aquela descoberta mudaria tudo.
***
Eustáquio assistiu com preocupação o fogo restante se extinguir calmamente, resultado da combustão das últimas gotas do álcool em gel, deixando uma fumaça preta e bruxuleante no lugar. Já não se lembrava do som do cacarejar das galinhas, e a última pena fora usada como isca para peixes mais de uma semana antes.
Quase toda a terra fora lavada pela chuva, que no último mês caía mais gentil sobre a embarcação. Tomates e couves já tinham acabado há tempos, e não suportava mais o gosto da água destilada com peixe cru. O limite estava próximo.
Durante o ano em que permaneceu embarcado, a arca do professor resistiu bravamente a tempestades e ventos, ao frio e à chuva incessante, e a madeira inchada impediu, quase que milagrosamente, que os vazamentos e goteiras levassem seu mundo a pico. Agora o espelho d’água batia nos tornozelos, e a pele do pé parecia que ia se descolar da carne a qualquer momento.
Acima de tudo, Eustáquio sentia frio. Não se lembrava da última vez em que esteve aquecido. O mingau de aveia e as sopas que cozinhara ao longo dos meses, usando galinhas, peixes, tripas e pele lhe salvaram a existência, mas a humanidade esgarçara-se. Estava por um fio. Sentia-se triste.
Olhou mais uma vez na direção do sol nascente, sob brumas, e pela primeira vez em muito tempo sentiu que sua embarcação não se movia. Desde o dia que se ergueu sobre o muro e navegou pela principal avenida de sua antiga cidade, tanto tempo atrás, seguia quase que diariamente em direção noroeste.
Fechou mais uma vez os olhos na direção oposta ao sol nascente e tomou um susto. Fumaça e som de vozes no nascer do dia. Lembrou-se do gosto do café coado e achou que era uma miragem, mas não. Avistou terra firme. Havia esperança.
Lançou com esforço hercúleo o pequeno barco que navegara por 30 anos sobre os jacarés da Pampulha e, remando até o limite de seus pulmões, alcançou a ilha de quase 5 quilômetros quadrados. Boiava sobre o Planalto Central, quase 200 metros acima de onde, um século antes, havia sido construída a capital Brasília.
Ao verem o barquinho se aproximar, as pessoas que começavam o dia em cabelos revoltos e casacos de lã se lançaram à água sem medo do que pudesse estar nadando por ali. Alcançaram o barco de Eustáquio em pouco tempo, e juntos, depois, foram em busca da Arca, de onde retiraram o único livro que seria lido naquele acampamento por muitos e muitos anos. O livro Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, foi a base da nova civilização, os planaltinos.
Naquela noite, em volta da fogueira, Eustáquio contou sua história, e ouviu os relatos tristes de homens e mulheres que haviam se separado dos seus e que conseguiram, de formas diferentes, chegar àquele platô. Foi acolhido com palmas, café coado na hora e peixe assado na folha de bananeira. Comeu tapioca doce, mais doce do que se lembrava ser possível. Eustáquio foi abraçado, se aqueceu. Fez parte do grupo. Sabia que ali viveria o resto de seus dias. Sentiu-se melhor do que naquele longínquo sábado de Carnaval na Rua dos Guaicurus, duas encarnações atrás.