Os filhos dos homens

Eles passavam devagar, um voo baixo no céu rosa. Dois, dois Taqnia 40, duas sombras grandes andando na terra.
“Ben!”. Olivia falou grande. Ela lá embaixo, perto dos restos dos domos. O Heinkel também lá embaixo, portas abertas. Olivia acenou. Seu rosto brilhava azul no capacete. Pulei na sua direção, pisando em pedras. Ventou passou minha cabeça.
Olivia segurava a caixinha de luz. Encarou ela e falou alguma coisa. Ela respondeu. A caixinha falava às vezes. Quando cheguei perto, a mão de Olivia encostou meu ombro, depois a mão apontou pra terra. Os Taqnia já iam longe.
“Aqui, Ben. Pode cavar aqui mesmo.”
Cavei a terra. Debaixo frio. Sempre frio aqui Utopia. Quebrei o chão branco duro entre os dedos. Duro, mas quebra, duro, mas solta. Tirei placas do chão branco.
Gelo. É assim que Olivia chama o chão branco. Eles bebem gelo no Kindah, bebem no souk. Fervem e bebem. Olivia bebe também. Eu não bebo. Nunca bebo.
Quebrei o gelo. Quebrei dois pedaços, um grande, um menos grande. A sombra de Olivia se moveu. Olivia pegou os pedaços. Ela embolsou os pedaços.
“Continua cavando porque está próximo. Aproveita e separa um pouco mais de gelo.”
A sombra diminuiu. Cronch-cronch, fizeram as botas. Na terra fizeram cronchcronch.
Ela esvaziou bolsa na caçamba. O gelo fez barulho dentro da caçamba. Eu vi o sol. Continuei cavando.
Uma ponta vermelha apareceu. Puxei. Presa. Puxei mais. Um pouco mais.
O gelo soltou, a ponta vermelha saiu. Como chamava mesmo? Parecia… Taqnia?
Menos grande. Taqnia bem menos grande. Tinha desenhos nele.
Cronch-cronch. A sombra de Olivia voltou. As luzes do capacete de outra cor.
Parecia caixa transparente onde morava Baha. Só vive dentro de gelo, o Baha, gelo mole, á-gua. Dentro do capacete cabeça de Olivia parecia ele. Ela falou, não comigo porque não ouvi. Bolsa então veio. Falou pra embolsar mais gelo. Embolsei mais gelo.
Olivia tocou a ponta vermelha, passando o dedo nos desenhos.
“Isso… isso é indiano?”, ela disse. Olhou dos lados, pros domos sem domos.
“Aqui era um complexo dos rafiq então… O que acha disso, Ben?”
Olhei pra ela. Muita coisa pra ver: olhos, buraco de comer, sobrancelhas, buracos de respirar. Olhei pra mão dela, a mão grossa com a luva. Olivia não podia ficar sem luva aqui. Eu posso. Não uso luva, não uso capacete. Olivia não podia ficar sem capacete também. Não fora do Kindah ou fora do Heinkel. Quando ela tira o capacete, sinto o cheiro da cabeça, do cabelo dela. O cabelo dela cheira a incenso do souk.
Atrás, o vento soprava. Pontos de terra voaram. O vento começou com fuu-fuu.
{Tempestade aproxi… quinze minutos}, Heinkel disse.
Olivia ficou de pé, devagar. Sempre mexíamos devagar quando fora. Olivia não gostava quando pontos de terra voavam, nem de fuu-fuu. Uma vez largou muito gelo pra trás por causa de fuu-fuu.
“Indiano ou não, agora é nosso.” Ela guardou caixinha no peito. “Coloca a sonda na caçamba, Ben.”
Sonda. Sempre esquecia o nome. Levei para caçamba, a outra. Olivia entrou no Heinkel. Eu também. Chão seco e empoeirado. A porta fechou. Vento parou com fuu-fuu.

***

Voltamos para o complexo. Olivia parou na entrada, depois das portas que respiram. Vários veículos ali. Sempre. Encostadas na parede, crianças viam Olivia tocar minha cabeça, colocar máscara meu rosto. Uma menina fez cara pra mim.
Olhei pro chão.
Escuro, quente. Não gosto. Prefiro fora. Nos Kindah todos iguais Olivia quando Olivia sem capacete. Cabeças peludas de cabelo. Mas cabelos nem sempre cheiram bem. Não cheiram a incenso. Não sei por que não tenho cabelo.
Aqui vejo outros Ben. Fazem fila sempre outros Ben ou dentro de Taqnias que andam na terra. Máscaras nos rostos. Olivia disse que fazem túneis e que existem máquinas só para abrir túneis. Sempre abrindo túneis. Olivia falou que não preciso abrir túnel. Acho melhor. Não gosto. Escuro, quente dentro deles. Mas podia ficar perto de outros Ben. Furar terra com eles.
Chegamos souk. Cheio, apertado souk. Fumaça e plantações nas paredes.
Gente igual Olivia no meu braço e no outro, na frente e na atrás. Lojas. No souk tem duas lojas gozadas. Não trocam sonda, nem água. Mas têm tanques e tubos.
Nos tanques e tubos têm Ben grande, têm Ben menos grande. Vários Ben, vários tubos-tanques. Olivia falava para não olhar.
“Vamos antes que o Faisal feche.”
Passamos ao lado de um Al-Mat’am. Pessoas dormiam nas mesas, garrafas flutuando ao redor delas. Dois velhos, sentados cima de canos, bebiam bebida dourada e mexiam peças num tabuleiro.
“Xeque… mate”, um velho disse pro outro.
Porta da loja do Faisal tinha placa luminosa, sempre acesa. Gosto da loja.
Ver coisas, cheirar coisas. Não gosto do Faisal. Faisal não gosta de Ben. Mas Olivia me levou assim mesmo. Nós entramos.
Faisal usava roupa larga e clara de gente do souk. Jalaba. Ja-la-ba. Tinha cor de olho igual de Olivia, um olho. O outro, diferente. Parecia feito da mesma coisa que sonda. Faisal ergueu a cabeça. Ele cheirava a tempero. O souk cheirava a tempero.
“Já falei pra não entrar com esse monstro aqui”, ele disse grande.
A mão de Olivia encostou na sonda. “E como o senhor quer que eu traga essas coisas pra cá? Sozinha?”
“Como vai trazer não me importa. Sabe muito bem que não gosto de alienígenas.”
“Aliení…? Faisal, o senhor sabe que Ben foi feito aqui mesmo. É tão marciano quanto eu, você ou essa mesa aí.”
“Daqui a pouco vai dizer que somos todos irmãos.”
“Em parte, somos sim”, Olivia disse. “Ele tem uma porcentagem humana, esqueceu?”
Faisal fez aquele barulho com boca quando sorri. Mas não sorria.
“O que trouxe pra mim?”
“Ben, mostra pra ele”, Olivia apontou pro balcão. Coloquei sonda no balcão.
Faisal tirou plástico e fez outro barulho com a boca, barulho igual de vento.
“Rafiq?”, ele disse. “Onde conseguiu?”
“Lá em Utopia. Está novinha. Praticamente sem danos.”
Faisal fez cara. Muito confuso. Sempre fazem cara. Fazem cara pra coisa boa, pra coisa ruim. Sempre fazem cara.
“Parece da época da Naya Hastinapura…”, ele disse.
“Os que tentaram terraformação localizada.”
“Isso… Esta sonda deve ter uns cinquenta anos pelo menos.”
A cabeça de Olivia mexeu. “Naya Hastinapura… Nossa…”
“Nem me diga.”
“Verdade o que aconteceu lá?”
“Tá falando do quê? Das histórias de canibalismo?”
“Sim…”
“Parece que foi mesmo verdade.”
“Mas o senhor viveu naquela época.”
“Viver eu vivi, menina, mas nunca morei com os rafiqs. Parece que foi algum problema nas máquinas de terraformação, cálculos errados… é o que acontece quando se louva deuses com cara de bicho.” Ele olhou pra mim. Eu olhei pro lado.
Os dois continuaram a conversar. Falaram sobre sondas, falta de alimentos, bactérias descontroladas… Vi árvore pequena num pote. Cheirei árvore. Cheiro azul de terra.
“Ou-ou-ou!”, Faisal disse grande. “Tira o focinho desse bonsai aí, feioso!”
“Calma… Ben nem encostou nele.”
“E se encostasse ia me cortar o bonsai toda com aquelas garras”, ele falou, me encarando. “Olha isso. Olha pra cara desse aborto. Não tem boca, não tem nem olho direito. Como você tem coragem de ficar perto desse negócio, hum? Ainda mais queimado.”
“Eu mesma queimei a silitag dele.”
“Você…? E se ele cismar de te atacar, hum? Vai fazer o quê?”
“Ben não faria isso.”
“Vai confiando, moça. Vai confiando…”
“Ele nunca me deu problema. Ao contrário, só ajuda. Não tenho do que reclamar.”
“Não tenho do que reclamar… quando esses monstros se rebelarem, aí sim vai ter do que reclamar.”
“Lá vamos nós…”
“Isso… vai, vai achando graça. No dia que eles dominarem tuuudo aqui, vão querer dominar a Terra também. Vai ver.”
“Faisal… Ben não pode nem respirar na Terra…”
“E desde quando isso é um problema? Também não podemos respirar aqui e olhe só para nós.”
“Não seria melhor o senhor deixar essas teorias de apocalipse gimo pros seus amigos de mansaf?”
“Co… como é, menina?”
“É que vim aqui pra fazer negócios…” Olivia passou a mão no cabelo. “Quanto pela sonda?”
“Dou cinco mil.”
“Cinco, Faisal? Está cheio de lentes e biosensores aí dentro. Onde o senhor vai encontrar esse tipo de coisa por aqui?”
“Dou cinco e duzentos então.”
“Sete.”
“Cinco e quinhentos.”
“Seis e trezentos.”
Faisal apertou a boca. “Seis e cem e não se fala mais nisso.”
Houve um silêncio. Ouvi pessoas lá fora. Olivia falou sim.
“Ótimo.” Faisal pegou a caixinha de luz dele e mexeu com ela. Olivia olhou para sua caixinha de luz e balançou a cabeça.
Antes sairmos, Faisal chamou Olivia. “Ei, não pegou um pouco de água em Utopia? Pago bem por água de lá.”
“Peguei. Mas a água é pra mim. Pra mim e pro meu peixe.”
“Peixe…? Pecado jogar água fora pra peixe”, ele disse, fazendo cara ruim.
“Deviam prender você por isso, moça. Prender você e sumir com esse aborto horroroso aí. Cara de cobra.”
“Prazer negociar com você também, Faisal…”
Ele falou grande atrás, alguma coisa de guerra.
Do lado de fora, Olivia acendeu um cigarro debaixo da placa da loja. Pele dela ganhou brilho rosa. Ela olhou pra mim. Mostrou os dentes.
“Vamos, Ben.”
Passamos perto da barraca dos tubos. Por entre os Ben suspensos, uma mulher andava sozinha. Ela tinha cabelo cinza e uma boca grossa, grossa-vermelha
Ela esbarrou num dos tubos. Tubo quebrou, espalhando no chão caldo e um Ben menos grande. Barriga do Ben rasgou e ele abriu muito os olhos. Começou a inchar, inchar. A carne virou algo seco.
“Desculpa”, ela disse. “Quanto pelo estrago?”
“Fica despreocupada, moça,” o dono da loja levantou as mãos. “Fervo outro desse rápido, rápido.”
A mulher me encarou. Mordeu a boca, boca vermelha igual Olimpo. Olivia me puxou.

***

Olivia dormia na coisa macia. A minha coisa macia ficava no chão, a de Olivia, no alto. Durmo mal noites no alojamento. Calor, máscara. Durmo mal.
Levantei. Baha acordado também. Parecia dormir nunca. Olivia disse que não podia tirar Baha da caixa transparente. Fiz isso uma vez. Ele abria e fechava a boca muito. Corpo dele gelado. Olivia acabou falando grande comigo aquele dia, triste. Nunca mais tirei Baha da caixa transparente.
Pele quente. Respiração difícil. Saí da coisa macia.
Boca de Olivia barulhava estranho enquanto ela dormia. Pele dela macia.
Não parecia quente. Agachei e senti o cheiro do cabelo. Incenso do souk.
Ela virou o rosto.
“Ei… o que está fazendo acordado?”
Encarei a porta.
“Quer sair, não é? Pode ir, Ben. A porta está aberta… Só não vá lá no souk.
Não quero que aquele doido do Faisal veja você por aí sozinho. Mas pode brincar no Perímetro, se quiser.”
Perímetro. Olivia sabia que gosto de lá. Único lugar com árvores. Cheio delas.
Quando fora com Olivia, nunca vejo árvore. Só terra e monte e céu. Céu fora maior que qualquer um dos Kindah. Céu aqui preto perto.
Os telões no Perímetro estavam apagados. Dois, três telões. Povo do Kindah assistia pessoas neles, ouviam, viam histórias. Lembro da história do veículo na água, as grandes águas, o grande veículo atravessando a terra mole entre dois braços de água, as pessoas no final, rostos de coisa boa, o veículo que retorna, o homem de cabelo louro e os outros homens, todos fazendo música na água, árvores ao redor de todos, muitas, muitas árvores, árvores como nunca vi.
Zumbido maior no Perímetro. Todos se reuniam no Perímetro às vezes. Pra conversar, pra ver telões. Nos cantos do domo, quatro torres de hastes de prata.
Acumuladores. Zumbido vinha deles. Tremem-zumbem. Barulhando baixo, sempre barulhando. Árvores cresciam mais grandes perto dos acumuladores, mas menos grandes que na história do homem louro na água.
Pessoa saiu de trás duma árvore. Uma mulher. Cabelos cinza. A mulher do souk. Boca sorria.
“Olá”, ela disse, chegando perto. “Está fazendo o que aqui a essa hora, rapaz?”
Mão dela tocou meu queixo, tocou máscara, meu pescoço. Mão dela cheirava óleo.
“Queimado? Seu dono deve confiar mesmo em você”, ela disse. “Qual seu nome?”
Olhei pro cabelo dela. Cinza cor da cratera Gale.
“Sim, é meu cabelo. Pintei ele.”
Pegou minha mão. Colocou minha mão no cabelo. Era macio.
“Gosta?” Boca sorriu, a enorme boca. Sorriso sumiu. “Uma pena que não pode falar… queria saber o que está pensando agora.”
Ela para perto dos acumuladores. Tocou num deles. O acumulador fez barulho seco fino. Como caçamba do Heinkel.
“Conhece a história da Torre de Babel? Não? É… acho que não. Se eu me lembro bem dela, tudo começou quando um rei chamado Nimrod decidiu que iria criar uma torre, a maior torre de todas, uma que chegaria lááá em cima, lá no topo dos céus. Daí ele juntou homens do reino todo e colocou cada um deles para trabalhar sem descanso nenhum, dia e noite, noite e dia, até que a obra estivesse completa. Deus… quer dizer… já lhe falaram alguma vez sobre Deus…? Bom, isso já pediria uma outra história. Enfim, Deus, irritado com a pretensão do orgulhoso rei Nimrod, resolveu que tinha que fazer algo a respeito. Os meses se passaram, e a obra da torre já ia bem adiantada. Certo dia, quando os pavimentos mais altos da torre estavam já quase tocando as nuvens, Deus interveio. Como castigo, ele fez com que os trabalhadores da obra começassem a falar em línguas diferentes, eles que minutos antes estavam falando sobre suas esposas, suas famílias, suas terras, seus planos. Ficaram todos confusos. Não podiam mais se entender, não podiam mais se comunicar, nem mesmo se organizar. A torre foi então abandonada para sempre.”
A boca enorme parecia que ia dizer mais alguma coisa, boca vermelha como Olimpo. Olhei pra baixo. Peito da mulher movia para frente para trás, devagar.
“Sabia que isso aqui produz veneno?” ela disse, tocando o acumulador.
“Quer dizer, veneno pra você, não pra mim. Por isso você e os seus precisam de máscaras nessa colônia, nesse ambiente controlado. Como um arreio.”
A mulher saiu de perto dos acumuladores. Mão dela tocou a minha.
“Seu lugar, rapaz, é lá fora. Mas não se preocupe… Logo, logo esse sofrimento vai acabar.”
Fez ela coisa que nunca ninguém fez: chegou perto e encostou boca no meu rosto. Um estalo. Soltou minha mão e saiu caminhando. Sumiu para fora do Perímetro, para além das árvores.

***

Olivia decidiu que íamos a Vastitas Borealis. Bom lugar pra coleta de água, sondas, bactérias, quem sabe. Bactérias valem muito no souk. Editar coisas com elas. Olivia já disse que um pouco de mim é elas.
Pegamos Heinkel. Seguimos pelo túnel que ligava os alojamentos com as vias de dispersão. Portas que respiram abriam fechavam, barulhando igual minha máscara. Quente, escuro no túnel. Não gosto de túnel. Mas íamos a Vastitas. Só de túnel até Vastitas.
Olivia vestia roupa pra fora dos Kindah. Botas, luvas, calça, capacete no chão poeirento. Heinkel falava sobre movimento e tempo. Paredes caminhavam ao nosso lado, rápidas como foguetes. Hora e outra, luzes apareciam.
Estávamos na seção 49, quando tudo ficou devagar.
[Obstrução a dois quilômetros no cruzamento dos túneis 15 e 21. Obra paralisada.]
Olivia abriu os olhos. Vidro aceso. Ela tocou vidro.
“Ai, merda…”
Ela começou falar e outro veículo apareceu na frente, parado. Tinha outro depois dele. E mais um. E outro.
Esperamos. Olivia já terminava de vestir, quando, longe de nós, fogo laranja brilhou do chão ao teto.
Barulho forte no túnel, como metal batendo metal. Um taqnia que andava na terra levantou faísca no fim da curva.
Os vários portões do taqnia abriram.
Senti vibração na cabeça.
“Mas o que está acontecendo?” Olivia disse.
Algo começou a se mover entre os veículos. Rápido. Sombra saltou na escuridão. Passou por nós, caindo perto duma coluna de aço. Senti vibração forte na cabeça, na parte atrás da cabeça.
Olivia olhou pela janela, seus olhos grandes.
Sem dizer nada, abriu porta e saiu. Segui ela.
Sozinho, escondido num pedaço de escuro entre as colunas de aço, um Ben tremia. Tamanho meu tinha, mas tinha máscara não.
Cheguei perto. Cabeça vibrou de novo, como se dedos subissem na nuca.
Ben olhou pra mim. A nuca queimava.
Olha túnel. Olha Túnel. OLHA Túnel. OLHA TÚNEL.
Bem inchou-inchou. Rosto abriu como fruta madura.
Chão tremendo. Dos outros Heinkel, pessoas começaram a falar grande.
Parecia fuu-fuu, mas depois entendi. Outros Ben. Vários. Eles corriam, tropeçando na luz fraca das paredes. Minha nuca vibrava-queimava.
Começaram cair no chão, na poeira. Caíam ou se jogavam contra os veículos.
Vários Ben. Todos sem máscara, cabeças abrindo. Soltavam fedor forte, amargo.
Fedor empesteava tudo.
OLHA TÚNEL. OLHA TÚNEL.
Olivia levou mão na boca. Começou a soluçar.
“Eles… eles estão se matando?!”

***

Olivia dormiu no Heinkel depois de comer. Tinha me dado adesivo-soro e falou que eu podia correr na planície. Eu corri.
Bom na planície. Sem máscara, sem calor, sem escuro. Só o vento e o céu, grande, sensação ágil nos braços nas pernas. Olivia podia fazer alojamento aqui. Eu ficava só fora e ajudava com gelo, com sonda, com bactéria. Podia ficar só fora aqui.
Escorreguei num banco de areia. Na terra embaixo, um buraco grande, preto fundo. Tinha placas, placas que povo de Olivia sempre colocava. Iam construir túnel até ali… Sempre construindo túnel povo de Olivia, fazendo novos Kindah.
Precisariam de mais Ben. Muito mais Ben.
Subi o monte. Sol esquentava um pouco, mas vento ajudava. Vastitas Borealis frio, bom frio.
Uma pequena sonda-robô apareceu. Seguiu pela terra, levantando poeira.
Me aproximei dela, quando um Taqnia surgiu no céu. Grande, diferente. Vinha de longe, de Zephyria ou de Yaonis. Ia direção dos Kindah. Deixou um rastro no ar, rastro de combustível. Cheiro roxo. Nunca senti esse cheiro antes.
Assim que voltei, Olivia já acordada. Ela ouvia o Heinkel, que dizia alguma coisa sobre o que aconteceu no túnel, a morte dos outros Ben. Olivia ouvia atenta.
Fizemos coleta até o céu azular.

***

Uma porta se abriu e pude sentir cheiro de incenso. A cabeça de Olivia apareceu, cabelos molhados. Ela me olhou por um tempo.
“Só pra checar”, ela disse.
A porta fechou. Fechou e abriu de novo. Olivia entrou rápida no quarto, desviando das bolsas de coleta e das ferramentas espalhadas no chão.
As mãos vieram. Tocaram minha cabeça, tocaram meu queixo, dedos apalpando máscara.
“Não tira essa máscara, ok? Você não pode nunca tirar essa máscara aqui dentro”, ela disse. Tinha gelo nas bochechas dela.
As mãos sumiram. Olivia fechou a porta.

***

Quase manhã quando luzes começaram a piscar no alojamento, luzes fortes acompanhadas de uivo. De dentro de uivo, uma voz saltava. Voz ecoou pelo alojamento todo.
{Atenção habitantes dos Kindah sete, oito, onze e quinze. Isto não é um teste.
Dirijam-se todos imediatamente para o Perímetro. Repetindo: isto não é um teste.
Deixem seus pertences para trás e dirijam-se todos para o Perímetro imediatamente.}
Saí do quarto. Olivia sentada na coisa macia, coçando nariz.
Ela se vestiu rápido. Pegou minha mão e saímos para o corredor. Outras pessoas já estavam lá. Elas falavam baixo, palavras confusas.
“Droga”, Olivia disse, entrando de volta no alojamento. Voltou rápido, segurando copo. Dentro do copo, Baha boiava água.
Chegamos os três no Perímetro, acompanhando multidão de residentes.

Alguns carregavam bolsas, outros, vasos com plantas e frutas. As caixas de som continuavam a repetir o aviso de não teste.
Mais gente no Perímetro. Gente do souk, das estações, dos laboratórios, das torres de criação… Muita gente. Até o Faisal. Nenhum Ben.
O uivo aos poucos sumiu. Zum-zum das bocas também. Barulho fino.
Os telões do Perímetro ligaram.
“Silêncio, silêncio”, pediu um homem de jalaba metálica.
Imagens de seres que nunca vi. Uns tinham orelhas grandes, outros, dentes bocas grandes. Muito pelo, quase todos com muito pêlo.
Um desenho apareceu, desenho parecido com martelo e uma coisa que nunca vi. Correntes. Pareciam correntes. Debaixo do desenho havia rabiscos finos.
Olivia estreitou os olhos.
“Liber…Virus?” ela disse, ficando muda em seguida. Rosto dela branco.
Três pessoas apareceram nos telões. Sentadas atrás de uma mesa,
usavam roupas escuras, máscaras pretas e óculos cobrindo os rostos. Duas delas carregavam seres peludos e pequenos no colo. O do meio levava no ombro um ser estranho, de boca pra frente, boca pontuda amarela. Atrás deles, um pano. No pano, mesmo desenho do martelo e das correntes.
O mascarado do meio inclinou sobre a mesa.
“Vejo que estão todos aqui”, falou. Voz de homem, grossa.
Homem de jalaba metálica deu passo à frente. Pessoas abriram espaço.
“Quem são vocês?” ele perguntou.
“Nós, senhor sheikh? Não se preocupe com quem somos nós. O mais importante é o recado que viemos trazer para você e para todos os residentes.”
Silêncio maior. Pessoas olhavam umas pras outras. Nunca silêncio tão grande no Perímetro. Jalaba metálica movia as mãos devagar.
“E qual seria esse recado?”, ele disse. Homem no telão pareceu sorrir.
“O anúncio de que em breve todos vocês estarão mortos.”
Pessoas falaram grande, outras falaram menos grande. Jalaba metálica continuava movendo as mãos.
“Mas que insensatez é essa que está dizendo?”
“Não perceberam ainda?” o mascarado disse, olhando pros outros dois. “A falta de oxigênio já deve estar começando a afetar seus cérebros.”
Pessoas no telão alisavam os seres peludos, atentos aos murmúrios que aumentaram.
“Caso não tenham notado”, o homem continuou, “os acumuladores de vocês foram destruídos. Nós, do LiberVirus, sabotamos todos eles. Já aviso que qualquer
tentativa de conserto é inútil.”
Um grupo de pessoas correu para perto dos acumuladores. Eles tocavam os acumuladores, começando a abrir cada um deles com ferramentas. Os três no telão
conversavam entre eles. Um deles, não o do meio, tinha boca grande. Grande vermelha.
“É verdade!”, uma das pessoas disse. “Arruinaram com o capacitor dos filtros.”
“Quebrados! Os acumuladores foram mesmo quebrados!”

Carregando pessoa pequena, mulher de hijab falou grande: “Seus monstros!
Por que fizeram isso?!”.
“Monstros?”, o mascarado disse. “Nós monstros? Monstros são vocês, que crescem e se multiplicam à custa da escravidão in vitro de gimos. Quantos deles já morreram só para vocês pisarem aqui em Marte? Por que precisam explorar a vida dessas pobres criaturas? Não, não precisam falar. Sabemos bem porquê: pra que tenham um pálido vislumbre de conforto terráqueo. Não bastasse o que fazem com os gimos na Terra, agora querem multiplicar o mesmo sofrimento por todo espaço.
Deviam era nos agradecer por lhes proporcionar uma saída mais honrosa, já que uma evacuação em massa não parece estar na sua lista de prioridades.”
“Você nos condena por usar gimos em nossas colônias”, jalaba metálica disse. “Mas me responda o seguinte: de onde viria toda a gente necessária para fundar um complexo como o nosso? Nesta terra sem recursos, onde nem mesmo o ar é respirável. Responda! Todos conhecemos as histórias dos primeiros terráqueos que vieram aqui, de como suas empreitadas de colonização fracassaram porque não havia pessoas em número suficiente para domesticar esse planeta quase moribundo. Sejamos sinceros: só a colonização com gimos foi capaz de oferecer saídas para civilizar este planeta.
“Sim, é verdade que exploramos gimos. Mas aqui, no complexo árabe, eles são os gimos mais bem tratados de toda Marte. Olhe ao seu redor: nenhuma colônia atingiu o tamanho de nossas Kindah”, jalaba metálica disse. O mascarado mexia a cabeça.
“Claro, colocando centenas, milhares de gimos para trabalhar na construção de túneis, galerias e domos, numa existência de exploração e apenas exploração, esgotando até a última fibra de vida, que é logo substituída por outra escarrada dos seus tanques pressurizados”, ele disse. “Acredito que suicídios coletivos de gimos como o que aconteceu ontem nas obras não sejam tão frequentes…”
A multidão falou baixo. Jalaba metálica ficou calado.
“Foi o que pensei. Que a morte de vocês do complexo árabe sirva de lição para todos países que pretendam fazer mais colônias em Marte ou qualquer outro planeta”, o mascarado disse. Ele ergueu o punho fechado. Os outros dois fizeram o mesmo e falaram numa só voz: “Fim ao humano, melanoma das galáxias! Não à exploração de gimos!”
Sumiram do telão. Números apareceram no lugar. Números mudavam. As pessoas começaram a falar grande.
“É verdade! É verdade, olhem lá! Os níveis de oxigênio estão caindo!”
“Adoradores de gimo! Ecoterroristas”, um rapaz falou. Ele arremessou sapato num dos telões. Sapato caiu perto duma árvore.
Pessoas começaram a falar grande, a tremer. Homem da jalaba metálica ergueu as mãos. Pediu silêncio.
“Senhoras, senhores, amigos… acalmem-se”, ele falou mais grande. “Não é hora para o desespero. Se formos todos civilizadamente até as portas pressurizadas, poderemos entrar em nossos veículos, entrar nos coletivos e irmos embora daqui para algum outro complexo. Ficaremos lá até que consigamos novos acumuladores.”
As pessoas mexeram as cabeças, as vozes ficando lentas. Começaram a caminhar para fora do Perímetro.
“Isso”, jalaba metálica disse. “Civilizadamente.”
Chegamos até a entrada para o estacionamento. Soldados tentaram abrir as portas que respiram. Elas não abriam.
“Estão travadas, senhor”, um deles disse.
Os outros insistiram. “Por Alá. Estamos presos aqui!”
Senti alguém pegar minha mão. Olivia. Ela encarava muda as portas que respiravam.
Um homem de bournous vermelha ergueu o dedo. “Para os túneis! Vamos fugir pelos túneis!”
As pessoas começaram a se mover, correndo para longe das portas. Olivia e eu juntos.
Na confusão, alguém esbarrou Olivia, que deixou copo com Baha cair. Ela gritou, ajoelhando.
Parei a sua frente, abrindo braços. Pessoas passaram lado, rumo ao corredor dos túneis. Sozinhos ficamos.
Ajudei Olivia levantar. Ela segurava o Baha. Baha abria e fechava a boca.
“Baha…” Ela o fechou entre os dedos.
Seguimos frente. Uma multidão de pessoas já nos túneis, caminhando apressadas. Senti cheiro vindo de lá. Cheiro ruim. Segurei Olivia.
“O que… que está fazendo, Ben?” ela disse, puxando a mão. As pessoas iam longe nas luzes.
“Me solta! Vamos embora daqui ou eu vou morrer!”
Abracei ela contra meu corpo. Ela se debatia. Cheiro piorou.
Túnel desapareceu num estrondo. Teto veio abaixo, caindo cima da multidão, que desapareceu nas falas grandes. Olivia engasgou. Não havia mais túnel, nem gente. Só escuro, poeira e fumaça. Olivia tremia.
“Por quê…?” ela disse, amolecendo. Soltei ela.
Sentada no chão, ela não tirava os olhos do túnel. Sentei ao lado dela.
Sua mão abriu, deixando Baha rolar na poeira. Corpo dele se debatia fraco já, boca aberta, carne tremendo secando.
Igual Ben sem máscara.
Algo passou na minha nuca como dedos.
Saí dali, deixando Olivia.
Souk. Corri até lá.
Souk vazio. Algumas lojas abertas, outras fechadas. Havia várias mercadorias no chão. Pessoas tinham deixado tudo pra trás.
Antes de loja do Faisal, vi ela. Aberta. A loja dos tanques e tubos.
Dentro deles, só Ben menos grande. Uns nem tinham garras ainda. Saltei o balcão. No fundo da loja, dentro de tanques, dois Ben já grandes.
Procurei máscaras nos armários. Quebrei o lacre dos tanques. Gás escapou chiando. Antes que os Ben inchassem, coloquei máscara neles.

Os dois me olharam. Mãos fortes tocaram as beiradas dos tanques.
Fiz cabeça vibrar. Rostos dos Ben de frente pro meu. Eles disseram sim.
Olivia no mesmo lugar. Falava de olhos fechados, sozinha, as coisas que costumava falar antes de dormir. Parecia falar pro túnel. Mas não tinha mais túnel.
Levei os Ben até as portas pressurizadas. Farejei ponto entre os metais e o concreto.
Comecei a cavar, cravando garras. Rápido. Cavar e forçar a cabeça, a nuca.
Os Ben começaram a cavar também.
Placas de concreto e aço caíram. Aos poucos, luz. Na luz, alguns veículos parados.
Quando voltei, Olivia dormia. Carreguei ela nos braços.
Os Ben me aguardavam. Abri porta de um Heinkel. Coloquei Olivia dentro. Esperei.
Aos poucos, ela acordou. Pôs as mãos no vidro.
“Vamos, Ben!” ela disse. “Vamos embora.”
Não mexi. Ela ergueu a cabeça por cima do meu ombro. Viu os outros Ben.
Eles me aguardavam.
“Adeus, Ben”, ela disse. Boca tremia.
O propulsor do veículo estalou no ar, afastando detritos do chão. A última porta abriu para a planície.

***

Vivemos quatro agora. Não há mais Perímetro ou domo acima de nós. Apenas céu rosa ou azul, Sol, vento.
Trabalhamos juntos todos dias. Coletamos bactérias. Procuramos por adesivos-soro nos antigos Kindah. Corremos nos montes.
Aprendemos o que move os tanques, como usar os tubos. Continuamos a crescer.
Não há mais souk, só o Berço. De dentro de tanque, um Ben menos grande nos observa sem olhos, caldo envolto. Haverá cinco breve.





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