DESCOMPRESSÃO

Maria limpava o suor da testa, que já começava a irritar os olhos. Os movimentos repetitivos para cavar e limpar os buracos já eram automáticos, mas sempre exigiam um esforço demasiado, e ela já não era tão nova quanto antes. Na verdade, a concentração para não levantar muita poeira e manter firme a estrutura do buraco era o que a deixava mais tensa na atividade. Nessas horas, ela pensava em como deveria ser trabalhoso antigamente, em que além desse trabalho todo, ainda havia o sol ou a chuva para dificultar ainda mais o serviço.

Ali, a mais de 200 metros de profundidade no oceano Atlântico, pelo menos ela não teria esses problemas.

Dentro de sua minúscula cabine estava bem quente, o seu ar condicionado já não funcionava direito desde que seu pai, Zacarias, faleceu, e ela havia ficado com o robô da família. Isso já tinha sido há tanto tempo que era impressionante como aquela lata velha ainda se mexia, quanto mais trabalhar literalmente sob pressão. O seu robô deveria ser um dos mais antigos da cooperativa e discutivelmente o que mais achou minerais radioativos durante seu tempo de funcionamento. Provavelmente já estava em operação antes de ter passado pelas 3 gerações de garimpeiros submarinos da família de Maria.

Os outros garimpeiros também usavam modelos parecidos, bípedes, de tamanhos variados e equipados com brocas, pás, picaretas e outras ferramentas automáticas acopladas em seus braços mecânicos. Mas, diferente dos demais, o de Maria era o único sem gambiarras para poder trabalhar naquela profundidade. Isso era motivo de orgulho para ela, que acreditava que seu robô tinha vindo com as adaptações já de fábrica. O termo correto para aqueles modelos era R.B.T.O. (Robô Bípede Tripulado Operário) mas poucos sabiam disso ali. Ao contrário dos antigos robôs militares que se identificavam por códigos numerados, os garimpeiros chamavam os seus robôs por apelidos, como Furioso, Possante ou Quebra-tudo. O de Maria era, simplesmente, Severino.

Fazia tempo que Maria e Severino trabalhavam naquele buraco, talvez umas duas semanas, e parecia que haviam chegado onde ela queria. Logo que a broca de seu braço esquerdo atingiu a rocha mais dura, ela sabia que havia acertado a “pedra ferro” e toda a camada acima conteria os minerais radioativos que estava procurando.  Agora era necessário esperar as partículas se assentarem e reforçar as paredes com vigas transversais, que impediriam de toda e estrutura de mais de seis metros de profundidade desmoronasse em cima dela.  Após instalar a última viga e verificar se toda a estrutura estava boa, Maria decidiu ir almoçar enquanto a água ali ainda estava turva. Endireitou-se no assento e, em um impulso de seus propulsores, saiu da fissura sem dificuldades.

Quando pousou no assoalho oceânico deu uma olhada em volta com as câmeras frontais para se localizar. Parecia um cenário lunar, escuro, frio e repleto de crateras. Aquele ponto já estava gravado no GPS de Severino, e agora Maria só precisava encontrar algum cabo de recarga para não correr o risco de seu robô ficar sem energia durante a refeição. Ambos mereciam se alimentar, afinal. Achou um disponível a algumas dezenas de metros de onde estava, iluminado por um dos diversos holofotes que ajudavam aqueles que trabalhavam por ali a se locomoverem no breu. Sua experiência lhe ensinou que usar os propulsores por muito tempo poderia exaurir rapidamente a bateria interna de Severino, então Maria foi andando vagarosa e pacientemente em direção ao cabo, prestando atenção para não cair nos outros buracos espalhados por aquele chão escuro e lodoso.

Depois que alcançou e conectou o cabo, Maria deixou Severino em modo de espera e se aprontou para a refeição, enquanto seu robô era recarregado. Abriu um dos compartimentos internos da cabine apertada e tirou um pacote de biscoito de alga e uma lata de patê de gafanhoto.  Ela gostava daquele patê, bem melhor que os caranguejos e outros raros crustáceos que ainda habitavam aquelas águas e que, por se alimentarem do lixo tóxico da superfície, tinham um gosto bem azedo.

Enquanto comia, Maria viu, no monitor da câmera superior, uma sombra passar sobre ela. Sem surpresa, percebeu que era só mais uma ilha de lixo à deriva, deixando um rastro de dejetos por onde passava. Naquele momento lembrou-se das histórias de um vídeo antigo que assistira ainda quando criança, de uma época em que as pessoas habitavam os continentes em grandes cidades e no oceano ainda havia peixes. Agora, a contaminação por metais pesados, lixo radioativo e nylon tinham extinguido praticamente três quartos da vida marinha, desde as plataformas oceânicas, e provavelmente nas planícies abissais também, só restando os poucos crustáceos de gosto ruim. Maria nunca viu um peixe em toda a sua vida. Preferia trabalhar naquela água suja e escura, no entanto, do que nas usinas de reciclagem da superfície.

Muito antes de Maria nascer, a imigração para o espaço já era uma realidade. Começou com os trilionários que, cansados de seus iates nos mares já fétidos, decidiram montar suas próprias estações espaciais para ostentar do alto o mundo que era deles. Com isso vieram os primeiros investimentos que tornaram a colonização extraterrestre possível, sendo seu ápice nas colônias da Lua e de Marte. E para lá foi uma parcela dos sobreviventes da 3ª guerra mundial, fugindo da radiação, poluição e do aumento do nível dos mares e das temperaturas. Quem ficou para trás eram os que não tinham condições para pagar a passagem, ou seja, boa parte da população, que ficou restrita às usinas de reciclagem ou às vilas submarinas. 

As usinas eram os únicos lugares habitáveis na superfície e alimentavam com matéria prima a expansão das colônias espaciais. Em troca, as colônias e estações enviavam a maior parte do seu lixo para a Terra. Um grande conglomerado tinha o monopólio do lixo e ninguém mais podia reciclar uma lata de patê de gafanhoto sem que eles soubessem. Outra questão importante era a utilização de mão de obra humana na produção, muitas vezes forçada, já que os técnicos e especialistas em robótica industrial foram embora em sua maioria, e os que ficaram eram muito disputados.

Já os depósitos minerais naturais se exauriram ou ficaram economicamente inviáveis na superfície já bem antes da guerra, a única atividade que ainda fazia algum tipo de extração era a dos garimpos submarinos. As usinas conseguiam recuperar elementos como ferro, alumínio, cobalto, cobre e ouro, mas os minerais radioativos eram realmente difíceis de trabalhar, ficando a cargo das poucas cooperativas espalhadas pelo mundo explorarem essa mercadoria. Isso permitiu que os garimpos tivessem certa autonomia e não fossem alvos do cartel das usinas de reciclagem.

Não que Maria soubesse de toda essa história. Ela entendia que precisava achar o minério para continuar comendo e consertando Severino. Aliás, mantê-lo era até mais importante. Severino era, de certa forma, o único parente vivo de Maria, toda a sua família morrera em algum acidente ou, como seu pai, da doença de descompressão. Sua esposa a havia deixado há muito tempo, sonhando em fugir daquele planeta lixão e ir para o espaço. Nunca mais ouviu falar dela.  Essas eram lembranças dolorosas, que faziam Maria gastar o pouco que sobrava por mês com aguardente, que tomava sozinha em seu cubículo na periferia da vila submarina em que morava. Ela havia nascido no continente, todavia fora muito pequena para aquele povoado nas profundezas.

Sua família fez parte do irônico êxodo de volta ao mar, inverso do que a natureza levou milhões de anos para concretizar com a evolução das espécies. 

Satisfeita com a refeição, Maria reativou Severino, desconectou o cabo de energia e seguiu para o seu buraco. Pelos seus cálculos seriam mais umas 6 horas para quebrar uma quantidade boa de minério, carregar sua caçamba e chamar o transporte para levar o material. Com isso finalizaria mais um dia cansativo e poderia arrumar o ar condicionado de Severino.

Chegando ao buraco, porém, Maria viu em seu monitor outros 3 robôs avaliando com lanternas o interior da cavidade recém-cavada. Isso não era um bom sinal.

Ela reconheceu dois daqueles robôs, seus pilotos eram uns moleques que Maria viu crescerem e se tornarem pessoas bem desagradáveis. Eram filhos de um dos principais garimpeiros de lá, um sujeito desprezível que preferia terceirizar o serviço pesado, recrutando qualquer desgraçado que aceitasse trabalhar quase de graça para ele. Em troca, ele os deixava trabalhar em suas áreas. O problema é que boa parte dessas áreas  tinham sido roubadas de outros garimpeiros, ao mesmo tempo em que, coincidentemente, novas peças para robôs passavam a ser vendidas na vila.

Maria se aproximou do grupo, o que os fez direcionar a luz para ela, e levantou o braço direito saudando os outros três. Eles não responderam. Depois de alguns segundos, um deles, o terceiro robô, se propulsionou para frente de Maria e abriu os braços metálicos indicando para ela não prosseguir. Ela ignorou o aviso e começou a contorná-lo, mas foi impedida com um empurrão que fez Severino cair de costas no lodo da superfície. Aquele mesmo robô não só a havia empurrado, mas também já estava com uma picareta hidráulica de prontidão, caso fosse necessária. Os outros dois robôs se aproximaram para conseguir enxergar melhor a briga. Quando Maria tentou fazer Severino se levantar foi jogada no chão de novo, agora por um dos irmãos, que voltou a derrubá-la por mais duas vezes.

Maria não conseguia ver pelos monitores, mas tinha certeza que eles estavam se divertindo.

Desde que ficou sozinha, ela sabia que algo assim poderia acontecer. Maria era alvo fácil e tinha experiência em achar o minério, então era questão de tempo até eles irem atrás de uma área dela. Na vila ainda era um pouco mais difícil coagi-la, mesmo reclusa,  andava bem armada e já era sabido que tiroteio em uma vila submarina poderia matar todo mundo afogado. Mas, aqui na escuridão, eles poderiam dar um jeito nela sem problemas. Nenhum homem ali gostava de matar mulher, não por compaixão, mas por ser um desperdício de prazer que poderia ser usufruído ou vendido.

O jeito era aceitar, tentar fugir e procurar outro canto para trabalhar.

Pelo menos seria, se Maria não tivesse sacado sua faca de plasma e, com ajuda dos propulsores laterais, enfiado-a onde seria a barriga do robô mais próximo dela. Essa faca era outro equipamento de fábrica de Severino, usada para cortar cabos de aço ou caçar crustáceos, mas que a família sempre havia usado nesse tipo de situação.

Os outros robôs não se moveram imediatamente, como se não tivessem entendido o que havia acontecido. Eles nunca devem ter participado de uma briga embaixo d’água, pensou Maria. Já ela, tivera seus bons anos de peleja no seco e no molhado. O ataque surpresa funcionou, e ela fez um corte transversal no bucho daquele abusado que não seria tão profundo, mas o bastante. O local não foi aleatório, ela sabia que a proteção naquela região costumava ser mais fina. A melhor técnica era fazer um triângulo com a faca e deixar a pressão da água fazer o resto, inundando a cabine do piloto.

Maria fez Severino ficar agarrado no outro robô enquanto o cortava, usando os propulsores para se afastar dos demais. Seu adversário tentava se soltar usando os próprios propulsores, o que os fazia se distanciar ainda mais de onde estavam. Por fim, Maria  largou-o e, de início, pareceu que sua operação não tinha dado certo. Até que finalmente o local do corte estourou e soltou um turbilhão de bolhas de ar. O robô adversário ainda tentou ir para a superfície, mas a água devia ter afetado o sistema elétrico. Em pouco tempo, ele parou de se mover e afundou.

Agora Maria estava longe de seu buraco e fora da área do garimpo. Lá as águas estavam bem mais escuras e pelo jeito mais profundas. Ela desligou as lanternas de Severino para tentar se esconder na escuridão, mas era tarde, já a haviam encontrado. Um deles, o irmão do primeiro assaltante, veio por cima e pegou Maria desprevenida, imobilizando o braço de Severino com a faca. O outro robô golpeou o ombro de Severino com a picareta hidráulica, tentando arrancar seu braço direito. Ele acertou o primeiro ataque, inutilizando o braço de Severino e deixando-o preso por alguns poucos cabos.

Maria agiu rápido e empurrou, com as duas pernas de Severino, o robô da picareta, aproveitando o movimento para fazer uma pirueta, ficando por cima do outro robô. Sem pensar duas vezes, ela deixou o braço danificado ser arrancado, o que lhe deu liberdade para usar a broca do braço esquerdo de Severino. Com a ajuda dos propulsores,  derrubou o robô adversário no chão e começou a britar suas costas.

Ela gritava de raiva de dentro de sua cabine enquanto perfurava. Estava com ódio deles, não por tentarem roubar sua área, mas por danificarem Severino daquele jeito. Ela acelerou ao máximo os propulsores, e a broca começava a avançar no metal. Frenética, começou a rir quando, em um tranco, atingiu a bateria do inimigo, que passou a fazer movimentos mais lentos, tentando escapar da agressora. Ela só parou de britar quando já estava fundo o bastante para ver o sangue saindo da fissura na lataria.

Maria esperou que o último robô fosse  atacar antes de ela terminar de finalizar seu companheiro, todavia, aparentemente ele preferiu fugir, as baterias deviam estar no fim ou ele pensou que fosse melhor contar ao chefe que ele acabara de perder dois de seus filhos.

Mas Maria não se tranquilizou, quando a adrenalina diminuiu, ela pode sentir que seus pés estavam frios e molhados. Do seu lado direito escorria uma fina camada de água fedorenta e salgada. Alertas de dano e rompimento piscavam em pequenos painéis na lateral da cabine. Junto deles, também estava aceso o indicador de bateria baixa.

Maria então acionou as boias de emergência. Quando se sofria algum acidente embaixo da água e havia tempo para tentar se salvar, alguns robôs tinham essas boias que rapidamente inflavam e os levavam para a superfície, onde pelos menos não se morreria sem ar. Infelizmente somente uma das boias de Severino pareceu funcionar, a outra provavelmente tinha sido rasgada durante o ataque, o que deixou o robô suspenso, nem afundava nem subia, ficando a mercê da corrente oceânica, que começou a levá-lo junto com Maria para longe do continente.

Ficaram ao deus-dará por vários minutos. Maria se esforçou para impedir o vazamento mesmo sabendo que não escaparia, pois o instinto a impedia de desistir sem tentar.  Sentiu um tranco do lado esquerdo e a sensação de estar caindo. A segunda boia finalmente havia estourado e eles agora afundavam lentamente nas profundezas do oceano.

Maria então respirou fundo e relaxou o corpo. Aceitou a situação e olhou  à sua volta.  Passou a mão suada nos painéis internos de Severino, procurando lembrar cada detalhe daquele local em que passou a maior parte de sua vida.

Pensou na esposa. Será que ela conseguiu escapar daquele planeta? Pensou na família que não existia mais, será que se encontrariam em breve? Pensou no pai que talvez fosse ficar bravo pelo estado do Severino. Pensou na vida miserável que tinha levado até aquele momento. Procurava paz em algum lugar.

A lataria do robô começava a ranger. Deveriam estar bem fundo e muito ar havia escapado da cabine, já ficava difícil de respirar. Maria torcia para que a falta de ar viesse antes de ser esmagada pela pressão da água.

Uma das câmeras ainda estava ligada quando atingiram o fundo com um baque. A tela do monitor estava preta devido à escuridão. Foi quando, sem Maria a acionar, uma das lanternas de Severino ligou. Ela já estava perdendo os sentidos e olhou para o monitor sem ideia do que estava fazendo.

Então viu algo se mexer do lado de fora. Era algo longo, cinzento e rápido, que passou bem na frente da câmera e fugiu. De repente outro vulto e mais outro. Aquelas criaturas pareciam atraídas pela lanterna de Severino e se aproximavam com curiosidade. Não eram bonitas, suas cabeças tinham grandes olhos que pareciam cegos e bocas abertas por causa dos dentes longos e delgados. Seriam peixes? Por um momento, Maria comparou aqueles bichos com ela e os outros garimpeiros. Feios, escondidos no escuro e sem perspectiva de voltar à superfície. Mas, acima de tudo, corajosos por ainda assim tentarem sobreviver a qualquer custo naquelas condições.

Maria deu uma última risada fraca e disse:

– Obrigado, Severino. 





Outros Artigos desta Edição

Anterior Próxima