EDITORIAL
Pandemia. Por cerca de dois anos, fomos involuntariamente jogados dentro
de uma narrativa semelhante à ficção científica. Se há a expectativa de que a
ficção pode nos preparar para a realidade, o fato é que as diversas narrativas sobre
pandemia – ficção científica ou não, ficcionais ou não – não podiam nos preparar
para o impacto psicológico que foram os anos de alerta mundial de saúde, que
apenas tiveram o seu final decretado pela OMS em maio de 2023.
Embora a vida, de fato, tenha começado a retornar à normalidade muito
antes disso, com a abertura de estabelecimentos, o retorno aos espaços públicos,
reencontros e a lenta despedida das máscaras, a pandemia deixou cicatrizes. Além
do luto, mesmo aqueles que não foram afetados pela longa covid tiveram sintomas:
alterações na memória, atenção e noção de tempo, e, em muitos casos, alterações
de humor, e estes são apenas alguns deles. Nós, da Nove Amanhãs, não fomos
nenhuma exceção. Com essas palavras, nos desculpamos pela longa ausência,
em especial com os autores, que pacientemente esperaram pelo nosso retorno.
Estamos, mesmo com todo o atraso, satisfeitos em poder, finalmente, apresentar o
segundo número da Nove Amanhãs.
Para esta segunda publicação, recebemos um número consideravelmente
maior de submissões, de autores mais espalhados pelo país do que no primeiro
número. Também nossa equipe editorial não está mais completamente concentrada
na cidade de Belo Horizonte. Aos poucos, nos espalhamos pelo país. Apesar de
este dado inicial soar como uma promessa de uma variedade maior de temas, nos
impressionou a quantidade de submissões de contos sobre pandemias. Infelizmente,
o ano era 2020, e todos ainda estavam submersos nos acontecimentos, sem o
distanciamento necessário para uma criação mais crítica e, com base nos critérios
de avaliação estabelecidos, esses contos acabaram não chegando à seleção final.
Se é verdade que a ficção científica nos auxilia a compreender o presente,
também é real que uma obra não deve ser medida apenas pela sua relevância
para discussões presentes. E isso é algo que aprendemos com o primeiro número,
quando este ainda era um dos quesitos de pontuação para a seleção da revista.
Uma vez alterado, foi feita uma repescagem do conto “A aula do professor
Reynolds”, de Victor Baspin, que compartilhamos com vocês nesta edição. Mas
não nos apressemos. A seguir o panorama do que os aguarda neste número, por
ordem de aparição.
Qual é a função da ficção científica? A maioria dos teóricos concorda que
não seja prever o futuro, mas, sim, um certo distanciamento para que possamos
compreender a nossa realidade melhor. Assim, abrimos a seleção de contos desta
edição com “48”, de Andreya Seiffert, um conto breve e introspectivo que nos
demonstra claramente como a aproximação do espaço pode nos aproximar ainda
mais do terreno e de nós mesmos.
Em “Visões de Bennin Copper”, seu segundo conto publicado pela Nove
Amanhãs, Michel Peres nos apresenta o misterioso e excêntrico Eliseu Serpa,
mineiro de Ouro Preto que ainda criança ficara órfão e fora adotado por um casal
de dinamarqueses. Já adulto, torna-se um artista plástico e performer notável pelo
uso de tecnologia em suas obras inovadoramente híbridas. A última delas desperta
o incômodo de executivos financeiros por ser supostamente capaz de prever as
oscilações nas principais bolsas de valores do mundo e, assim, enriquecer seu
criador. Ou seria tudo coincidência e intuição artística?
Em “A aula do professor Reynolds”, o escritor Victor Baspin apresenta ao
leitor uma narrativa cheia de tensão, mistério e ironia. Em uma oportunidade única,
o protagonista Saggo Khyr é convidado pela Alas Enterprise a explorar a Fronteira,
uma zona sobre a qual os personagens sabem pouco a respeito. Khyr embarca em
sua missão sozinho, mas mantém contato com seus chefes por meio do Intercom,
um dispositivo semelhante a um telefone. Quando todas as vozes se calam, no
entanto, o personagem se vê diante de uma autoridade mais absoluta do que o
próprio Deus.
“Descompressão”, de Foster Luppi, é a mistura perfeita entre ficção científica
e suspense. Todos os dias, a protagonista Maria trabalha ao lado de seu robô
Severino, buscando extrair metais radioativos do fundo do mar. No conto, grande
parte da humanidade já não habita a Terra, tendo colonizado a Lua e Marte, e
aqueles que restaram se veem obrigados a habitar as profundezas do oceano,
pois os continentes já não são adequados para a vida humana. Maria é garimpeira,
não tem família nem amigos e, ironicamente, nunca viu um peixe. Isto é, até a
descompressão.
“High Tech, Low Life”, de Laura Ribeiro, é uma narrativa que trata do
sucateamento do próprio corpo humano em um futuro distópico na desoladora
Necrópole, lugar pútrido que abriga os low life, ao mesmo passo em que é
orbitada pelas colônias que servem de moradia para os chamados high life, grupo
privilegiado de humanos que vivem em condições muito superiores ao lixo, às
doenças e à fome, que rodeiam aqueles que até de seus nomes foram privados,
tratados friamente por algarismos numéricos. Na Necrópole, as pessoas vivem de
modo precário e provisório, tentando sobreviver ao hoje sem a certeza do amanhã.
É nesse contexto desesperançoso que acompanhamos nossa protagonista, já
cansada da mera sobrevivência.
Entre as visões apocalípticas, “Alarme 147”, de Vitória Vozniak, nos apresenta
Letícia, uma sobrevivente da Terceira Guerra, com memórias e nostalgia de uma
vida que muito se assemelha à nossa enquanto luta por sobrevivência em um
mundo que ela desconhece quase tanto quanto nós uma vez que os meios de
comunicação foram extintos.
E quem não clamou nos últimos anos por uma intervenção alienígena?
Independente do posicionamento político, ambos os lados em algum momento
acreditaram que o melhor seria logo sermos invadidos por alienígenas, porque
uma solução entre nós, aqui no Brasil, não seria mais possível. Grabriel Candido
apresenta em “União” uma visão de um Brasil invadido por alienígenas que vieram
para supostamente resolver nossos problemas, ou os problemas da humanidade.
Mas seria isso mesmo o que desejamos?
Qual é a verdadeira função de um “Sistema presidiário”? Punir e castigar? Ou
a reintegração na sociedade? Ou, talvez, não a reintegração, apenas a certeza de
que o infrator não voltaria a cometer crimes? Será que realidades simuladas seriam
capazes de garantir algum desses objetivos? Mas a que custo? João Fortunato
desenvolve um experimento mental em seu conto, onde o sistema presidiário e a
proposta de aplicação de uma realidade simulada são comentados pela ótica de
um prisioneiro.
Apesar de todo o clima de destruição que as notícias recentes nos inundam,
fechamos esta edição com um conto de esperança. “Mais avançado que a mais
avançada das tecnologias”, apresenta um projeto decolonial, um futuro que só
é possível se voltarmos os olhos para o passado, para uma agricultura menos
predatória e que esteja mais em harmonia com a natureza. Tecnologias podem,
sim, fazer parte do processo, mas nem o conceito de progresso nem mesmo a
ficção científica devem ser tecidos apenas por avanços tecnológicos. Um retorno
às bases pode ser vital para o avanço, além de ser um respiro para o gênero da
ficção científica, como Raquel Setz busca nos mostrar.
Boa leitura!
Equipe Nove Amanhãs