HIGH TECH, LOW LIFE

HIGH TECH, LOW LIFE

O grafite cor-de-rosa ainda parecia fresco quando ocupei meu lugar na fila da NeoCruz. Chamar de “low life” o que vivíamos aqui na Necrópole era eufemismo. Vida é para quem vive, não para quem sobrevive.

— 435. — A voz de simulacro soou pelo alto-falante, fazendo com que a fila andasse e, um a um, carregássemos o corpo daquela centopeia de mil pés. 

Olhei por cima do ombro, para a multidão que ia atrás de mim, e soprei aliviada. Dormir na fila era um inconveniente que valera a pena. Vendi meu lugar, mais à frente, três vezes, e agora tinha crédito o suficiente para sobreviver a mais uma semana na fossa que era a Necrópole.

Daqui, da sarjeta, vivíamos das migalhas excretadas pelas colônias em órbita. Os high-life providenciavam-nos com todo tipo de recurso que tornasse nossas vidas mais miseráveis: descartes, crenças e doenças. 

A novidade agora era uma infecção que embrenhava no corpo e dissolvia a parte inorgânica da matriz óssea. Se você sobrevivesse à dor de ser desossado, logo morreria com o deslocamento dos órgãos internos. Um, dois, três dias de profunda agonia e depois membros amolecidos e resposta retardada do sistema nervoso. Do que sobrasse dele.

 — 437.

A NeoCruz vinha disputando a corrida das megacorporações das colônias. Descobrir a “cura” para a enfermidade com a qual nos haviam abençoado era um favor milionário com patrocínio estatal e nós, da Necrópole, éramos os ratos malnutridos de seu laboratório. 

O Estado da colônia governa para os que estão em cima e caga nos que estão embaixo.

— Literalmente. — A figura à minha frente respondeu, indicando, com os olhos, a tubulação desgastada que tremia ao nosso lado. Ótimo, pensei, uma neuro-receptora.

Ela riu.

— Não é como se eu quisesse ler os seus pensamentos… — continuou. — Mas você estava pensando tão alto e… essa raiva toda acumulada definitivamente não faz bem.

Suspirei. 

Raiva é veneno que a gente bebe sozinho. — Falou com voz de propaganda, imitando o anúncio do novo módulo de apaziguamento cerebral que vinham anunciando pela cidade. — Então eu prefiro… dar vazão.

Algo de perigoso pareceu sibilar no sorriso que eu não vira. A máscara que cobria tanto a boca quanto o nariz escondia também as expressões que oscilavam naquele rosto arredondado.

— E eu vi… — continuou sem cerimônia, sem esperar que eu sequer esboçasse uma reação. —…que você tem uma dessas! 

Dobrou a manga da jaqueta e exibiu a tatuagem imensa da NeoCruz que se alinhava à de outras empresas do ramo da saúde. BioCortex, MagmaNeural e DeltaSafe competiam pela posição de destaque naquela pele ressecada. Um verdadeiro outdoor humano, decorado com a prova do desprezo com que nossos corpos eram tratados. 

— Uma bomba-relógio. — Respondi, enfim. Aquela infinitude de carimbos só podia indicar uma coisa: aquela mulher vinha se sujeitando a todos os testes oferecidos pelas empresas, sobrevivendo, sabe-se lá como, à interação dos componentes que insistiam em nos injetar. Era uma bomba, e estava prestes a explodir. 

— Essa é sua segunda sessão? — Ela respondeu, simulando um sorriso com os olhos. — Você sabia? Eles já têm a cura. 

Franzi o cenho.

— Está lá dentro. — Apontou para o alto. — Mas precisam de mais dados.

— Todo experimento precisa de dados.

— Não, bobinha. — Aproximou o rosto até que seus olhos refletissem apenas os meus. — Nós somos os dados. Eles querem pânico, histórias para contar. Quanto mais desespero, mais os ricaços da Colônia estarão dispostos a pagar.

Observei-a com um súbito amargor na língua.

— Não é como se tivéssemos escolha. — Falei, afastando-me. — Ou nos sujeitamos aos experimentos e torcemos para dar certo, ou nos decompomos na vala aberta que se tornou a Necrópole. — Parei um instante, conferindo o número do visor. 443. — Aqui embaixo nós já nascemos mortos. 

Ela riu.

— E aqui está você, mendigando créditos em troca da vida que já dá como terminada. — Ela conferiu o visor e voltou a atenção para mim, os olhos brilhando. — Se está tão ruim assim, eu posso te ajudar, o que acha? — Meteu a mão no bolso da jaqueta e sacou uma pistola cromada e, antes mesmo que eu tivesse tempo de reagir, girou-a nos dedos e pousou o cano contra meu peito. — É só pedir — soprou. —, e eu termino o trabalho mal feito do destino.

Hesitei e, sem resposta, ouvi-a gargalhar. Ela sabia exatamente o que se passava em minha mente. 

— Mas você não consegue. — Falou com tanta certeza que me vi assentir, ofegante. — Nascemos nesse esgoto e somos encorajados a aqui permanecer. Não tem vida pra gente nem do lado de fora, nem do lado de dentro, mas, mesmo assim, nós insistimos. Você sabe a razão? 

— Por que está me perguntando isso?

— Porque você sabe. Eu ouvi, aqui dentro — tocou na lateral da própria cabeça com o indicador. —, você sabe. A política de apaziguamento adormece nossos sentidos, mas você não. Você sofre e persiste. Por quê? É só apertar o gatilho e pronto, tudo acaba. Tudo. Vida é para quem vive, não para quem sobrevive, não foi isso o que pensou? 

— O que você quer com esse papo? — Perguntei com a garganta seca. 

— Quero te dar uma chance. — E, com a expressão em puro êxtase, pousou a pistola na minha mão. — Você já está morta. Todos nós estamos. A diferença é que alguns cairão na primeira e outros na terceira dose. Ninguém passa disso. 

— A menos que…

— É. A menos que… — e apontou mais uma vez para o alto. Não precisou terminar a frase. 

— 456. 

Ela sorriu, acenando para o balcão que chamava seu número. Virou-se uma última vez para mim e gesticulou, puxando a máscara para baixo. De sua boca não saiu som, mas vi as sílabas se formando no ar entre nós.

Você já está morta.

Observei-a partir e, estática em meu lugar, tive meu corpo lançado para a frente pela fila que ainda se estendia atrás de mim. 

Duas doses, e da terceira não se passa. Era minha chance, não? Talvez me apagassem sem dor. Não veria meus ossos escaparem pela pele, não veria meus órgãos esmagados por mim mesma. Uma injeção e talvez tudo terminasse. Uma bomba-relógio, nós duas, a diferença é que eu já sentia meus ossos estalarem.

Olhei para cima, para a colônia que pairava sobre a Necrópole, e notei a pistola pesar entre meus dedos.

HIGH TECH, LOW LIFE. 

Uma vida de dejetos forçados em minha garganta e de misérias emolduradas na parede de nossas celas. Vida é para quem vive, não para quem sobrevive.

E nós já estávamos cansados de só sobreviver. 





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