MAIS AVANÇADO QUE A MAIS AVANÇADA DAS MAIS AVANÇADAS TECNOLOGIAS
Quando o barulho da nave foi ouvido, ela já estava irremediavelmente próxima das casas e plantações. Gritos de “entra e fecha tudo, entra e fecha tudo!” ressoaram pela vila aos pés da igreja e pelos alertas enviados por celular aos que moravam afastados. Tachos de doce foram largados no fogo e mães correram desesperadas, catando pelo braço os filhos pequenos, que olhavam maravilhados para as milhões de gotículas brancas que formavam um véu de noiva líquido no céu. Até seria um espetáculo bonito, se não fosse uma tentativa de homicídio.
De uma pequena oficina caseira, seis rapazes magros e ágeis saíram empurrando uma geringonça montada com pedaços de bicicleta, peças de carro enferrujadas e partes de eletrodomésticos quebrados. Os mais novos giravam com força a manivela propulsora feita com a roda de uma antiga máquina de costura, enquanto o líder da turma tentava apontar o atirador de míssil na direção do drone inimigo. Antes do ataque, os dedos grossos e nodosos de Vó Sebastiana acertaram uma bordoada na cabeça do neto mais velho, que sequer teve tempo de protestar.
– E o que é que vocês vão fazer, hein? Explodir esse troço pra espirrar o veneno e matar todo mundo, é? Bando de moleque. Já pra dentro!
A névoa assassina pairou durante quase uma hora. Quando o ar voltou a ser transparente, as pessoas deixaram as casas e foram conferir o tamanho do estrago. E, dessa vez, ele tinha sido grande: até a plantação de bananeiras fora afetada. Muitos choravam ao ver destruído o trabalho duro das manhãs no roçado, faça chuva, faça sol, a enxada gravando calos nas mãos. E havia também outro aniquilamento, invisível, porém ainda mais trágico: todo aquele veneno entraria no solo e atingiria a água que eles retiravam dos poços e bebiam.
Os olhos de seu Valdo também estavam cheios de tristeza e ódio, mas ele não se permitiria derramar nenhuma lágrima. Pegou um carrinho de obra cheio de arados, pás e facões, e convocou:
– Bora, meu povo, bora!
Fazia trezentos anos que eles viviam ali. Essa não era a primeira vez que tentavam eliminá-los, e nem seria a última. Fazia trezentos anos que eles viviam ali, e estavam decididos a permanecer por, no mínimo, mais trezentos.
#
A cena testemunhada quinze anos atrás voltava à memória de João enquanto o ônibus chacoalhava por uma estrada de terra no Mato Grosso do Sul. Na época, ele tinha vinte e dois anos e acabara de ingressar no recém-criado Programa Nacional de Êxodo Urbano. Passou os primeiros seis meses como aprendiz na comunidade quilombola constantemente atacada pelos drones de agrotóxico, depois viveu em aldeias indígenas, assentamentos e povoados rurais em diversas partes do país.
As lembranças do tempo de aprendizagem foram interrompidas bruscamente pelo solavanco do ônibus. Nem foi preciso o motorista avisar os passageiros: eles sabiam que aquela brecada significava que o veículo tinha quebrado. De novo. Era um modelo experimental desenvolvido por estudantes universitários e funcionava à base de energia solar e combustível renovável. Isto é, quando funcionava.
João, seguindo os companheiros, saiu do ônibus e sentou na beira da estrada. Apesar do incidente, o clima geral era de bom humor, e eles aproveitaram a pausa para lanchar, esticar as pernas e conversar. Todos ali se conheciam, se não pessoalmente, pelo menos de ouvir falar. Afinal, todos eram pioneiros, integrantes das brigadas que transformavam áreas arrasadas em Novas Células Agriculturáveis, carinhosamente chamadas de “descolônias agrícolas”.
– As estradas continuam a mesma merda de quando eu morei aqui pela primeira vez – desabafou Gabriela, abocanhando um sanduíche de pasta de grão-de-bico.
– Faz tempo isso?
– Se faz… Foi bem no início do Programa, as Novas Leis Agrárias ainda nem tinham sido aprovadas. Os guarani-kaiowá estavam em processo de retomada e fiquei em uma aldeia minúscula, espremida por uma fazenda gigantesca de soja. Lembro do cacique levantar uma abertura da cerca de arame e me levar para dentro dessa plantação. Caminhamos um bom tempo no meio dos pés de soja. Um silêncio… não tinha um passarinho, uma abelha, um mosquito, nada. Só soja. Eu não sabia por que estávamos ali, e pra falar a verdade estava morrendo de medo de algum pistoleiro aparecer, até que chegamos ao local que ele queria me mostrar. O cacique afastou os galhos de soja e apontou ali no meio, escondidos, clandestinos, cinco pés de mandioca que ele tinha plantado. Eles não comiam essa mandioca, ela estava contaminada com as tranqueiras químicas que eram usadas na soja, mas era um gesto de afronta.
Davi, rapaz krenak de dezoito anos que fazia sua primeira expedição com as brigadas, sorriu ao ouvir a história, tão parecida com aquelas que escutava os pais e avós contarem. Ele mesmo não tinha memória dos tempos de luta. As imagens da infância já eram de uma aldeia com muito verde e água limpa, além da presença constante de não-indígenas que estavam lá para aprender, não para destruir. Um antigo vagão da mineradora, que havia sido expulsa do território pouco tempo antes, era um lembrete de que as coisas nem sempre tinham sido tão pacíficas. Mas, para as crianças, era só um brinquedo com o qual elas se divertiam nos dias longos e quentes.
– E você teve notícias da aldeia depois, Gabriela?
– Sim. Por sorte, os donos da fazenda eram uma família só meio filha da puta. Quando vieram as leis, eles espernearam, mas não fizeram ataques. A aldeia se espalhou pelo antigo latifúndio, e em pouco tempo os guarani-kaiowá já estavam plantando mandioca não-contaminada. Fiz uma visita rápida uns sete anos depois da minha estadia, estava bonito de ver.
Edson, mecânico da brigada, apareceu todo sujo de graxa anunciando que o ônibus tinha sido consertado, pelo menos por ora.
– Pô, Ed, tá cada vez mais rápido, hein? Já virou expert em arrumar esse bólido – brincou João, sacudindo a poeira da calça e se preparando para mais sabe-se lá quantas horas de sacolejo pelas estradas péssimas, com sabe-se lá quantas outras pausas forçadas para reparos.
A viagem desassossegada servia como treino para o que encontrariam no destino final. A missão deles era estabelecer a infraestrutura básica de uma Nova Célula Agriculturável num terreno de nível F, que exigia a presença de pioneiros experientes. O lugar para onde se dirigiam era também uma antiga monocultura de soja. Só que neste caso, quando as Novas Leis Agrárias entraram em vigor proibindo esse tipo de cultivo, a empresa proprietária não foi embora sem antes pulverizar centenas de toneladas de agrotóxico sobre a plantação, deixando a terra envenenada e estéril pelos dez anos seguintes. Era a mesma tática que João viu ser usada contra o quilombo: uma guerra química, cujas armas não eram napalm e sarin, mas glifosato e paraquat.
#
Na noite seguinte ao ataque, os quilombolas se reuniram na igreja da vila, usada como espaço de discussão e tomadas de decisões coletivas. João não sabia se deveria ir ou não. Ele chegara duas semanas antes, e pela primeira vez desde então teve a sensação de ser um intruso, um estorvo. Ele pensava nisso sentado na cozinha da casa de Márcia, liderança do quilombo e anfitriã dos aprendizes do Programa. Ao cruzar com João, ela interpelou o jovem:
– E tá fazendo o que aí parado com cara de quem tá pensando na morte da bezerra? Tem reunião na igreja. Bora!
– Eu não sei se devo ir a essa reunião, Márcia… Acho que vai ser invasivo…
– Você não tá aqui pra aprender, menino? Pois venha aprender como funciona nossa câmara dos deputados. Bora!
Com um sorriso largo no rosto, ela pegou o garoto da cidade pelo braço e assim seguiram até a igreja. O sol tinha acabado de se pôr e o caminho por entre a vegetação verde escura tinha que ser iluminado com a luz dos celulares. Márcia emanava algo que João ainda não conseguia entender. De onde ela tirava força para sorrir depois de ver a terra dos seus ancestrais ser atacada como acontecera na tarde anterior? Será que algum dia ele também poderia ter essa força dentro de si ou isso é coisa que vem de nascença?
Quando chegaram, a câmara dos deputados a que Márcia se referira fazendo graça já estava em polvorosa. Várias discussões aconteciam ao mesmo tempo, mas o foco central da discórdia era o grupo de rapazes que tentara explodir o drone.
– E vocês acham que aquele troço mal ajambrado ia conseguir derrubar a máquina dos caras? Vocês estão vendo filme demais – zombou Zé, dono do boteco mais frequentado do quilombo e conhecido tirador de sarro.
– Pelo menos a gente tentou fazer alguma coisa – o moço mais velho tentou se defender. – Se não, como vai ser? Cada vez que esses arrombados mandarem veneno pra cá, a gente vai só chorar?
Ao ouvir o neto falar um palavrão dentro da igreja, Vó Sebastiana deu-lhe mais um cascudo, arrancando exclamações de admiração de boa parte dos presentes. Uma das mulheres mais velhas do quilombo, era tratada com reverência, e todos que cruzavam com ela automaticamente se ajoelhavam para pedir a bênção.
– Se aquele negócio tivesse explodido, nem gente pra chorar tinha sobrado – ela arrematou a bronca, e os rapazes se calaram.
Mas a questão levantada era importante: eles tinham que fazer alguma coisa, não dava só para se esconder dos ataques. As discussões recomeçaram ainda mais caóticas, até que uma voz de mulher pediu a atenção de todos. Foi necessário gritar algumas vezes, mas finalmente se dispuseram a ouvi-la.
João nunca tinha visto aquela moça, mas assim que botou os olhos nela ficou maravilhado. Deveria ter em torno de vinte e cinco anos, era alta e bastante magra, com longos dreads até a cintura. A pele preta contrastava com o amarelo vivo das roupas. Cobrindo o torso, ela trazia amarrado um pano que depois ele aprendeu se chamar “capulana”. Dentro dele, um bebezinho se aconchegava mordiscando o bico do seio da mãe.
– Nossa melhor alternativa é hackear o drone.
– Raque-o-quê? – os mais velhos indagaram, achando estranho aquele palavreado.
A moça chamou mais três companheiras, que tiraram de sacolas de palha trançada os equipamentos que vinham desenvolvendo em segredo. Assim como o lança-míssil dos rapazes, também eram feitos de sucata, mas tinham um acabamento melhorzinho.
– Vamos fazer uma demonstração pra vocês. Montamos esse drone aqui pra fazer papel do drone inimigo.
Uma moça de black power botou o aparelho para voar por sobre a cabeça dos presentes.
– A Maria que tá pilotando, certo? Agora, vou roubar o drone dela usando meu celular – Ela deu alguns toques na tela do telefone – Já consegui entrar no sistema e tenho acesso ao protocolo de comunicação do controle com a máquina… – Só mais alguns toques e anunciou – pronto, agora sou eu que estou pilotando! Maria, tenta dar algum comando.
Maria mexeu freneticamente no controle remoto, mas o drone ficou imóvel. Ela então guardou o controle de volta na sacola. A moça de dreads, usando o celular como joystick, fez a nave voar para fora da igreja e depois retornar, pousando nas mãos de outra hacker do grupo, esta com os cabelos presos em duas tranças grossas. “Cyber Dandaras”, João fantasiou, um sorriso de fascínio brotando no canto dos lábios.
– Vem cá, Pâmela… uma coisa é fazer isso aí que você fez com esse dronezinho mequetrefe, quero ver pegar aquela jamanta – Zé desafiou, com tom de deboche. Pâmela não se deixou incomodar pela provocação:
– Não é uma questão de tamanho nem nada do tipo. Os drones em geral têm a segurança muito falha. Ontem mesmo conseguimos entrar no sistema deles, mas não tivemos tempo de ganhar controle sobre a máquina. Da próxima vez, provavelmente já vamos conseguir. Mas, pra isso, não dá pra ficar moscando e só perceber que estamos sendo atacados quando já tem veneno caindo em cima de tudo. Precisamos montar um esquema de vigilância e alerta.
Todos concordaram, e logo começaram a definir o que cada um faria, quais seriam os horários das rondas, como o aviso poderia ser passado o mais rápido possível. Pâmela interrompeu o planejamento:
– E também precisamos decidir o que vamos fazer com o drone inimigo depois de capturado. Ontem, descobrimos as coordenadas de onde partem os comandos, ou seja: descobrimos onde está o piloto do drone. Adivinhem.
– Aposto que vem lá do pastão!
– Bingo!
O “pastão” era uma fazenda pecuária que tinha sido por muitos anos propriedade de uma família portuguesa e agora era administrada por uma empresa transnacional. Mudou de dono, mas continuou a mesma prática: tentar avançar sobre o território do quilombo. Na época dos Lima, isso era feito de maneira mais discreta, com um deslocamento de cerca, um boi que misteriosamente aparecia na terra vizinha… Com a chegada do dinheiro grande e o receio das mudanças que começavam a acontecer no país, os métodos vinham se tornando violentos.
– Temos duas opções – Pâmela retomou a palavra. – Uma é pegarmos o drone. E aí retiramos o galão de agrotóxico com cuidado, guardamos em algum lugar muito bem protegido e, em seguida, destruímos a máquina. Ou então, fazemos o drone dar meia volta e despejar todo o veneno no pastão!
Houve urros de empolgação. Eles vão provar do próprio veneno, literalmente! É isso aí, vamo pra cima deles! Brincou com fogo…
Os sonhos de vingança foram frustrados por Vó Sebastiana:
– E esse veneno aí não vai entrar na terra do pastão e ir pra água que tem embaixo e acabar contaminando os nossos poços? E se bater um vento na hora e a porcaria vir parar aqui também? Ou agora vento e água respeitam cerca?
A matriarca, como sempre, tinha razão.
#
Às três da manhã, o ônibus fez a derradeira parada. Os pioneiros levantaram com esforço, cada músculo do corpo doendo como se tivessem levado uma surra, os olhos fundos de sono. Bocejando, eles abriram o compartimento de bagagem e retiraram as barracas onde passariam muitas noites. Apesar do clima nas brigadas ser sempre de otimismo, houve uma boa dose de palavrões enquanto eles montavam acampamento no meio da madrugada em um local totalmente escuro, segurando lanternas com a boca e eventualmente acertando o martelo em algum dedo. Vinte minutos depois, já estava tudo pronto. Jacira, coordenadora do grupo, anunciou:
– Boa noite, povo. Nos vemos daqui a… três horas?
– Mas e os banheiros? A regra é montar os banheiros assim que o acampamento estiver estabelecido.
Olhares candidamente furiosos se voltaram para Tomaz, autor da interpelação inesperada. Gabriela, conhecida por ser muito direta, rapidamente resolveu a situação:
– Sem chance, Tomaz, tá todo mundo moído. Se quiser fazer número 2, vai de baldinho.
Como combinado, três horas depois estavam todos de pé. Fizeram um café da manhã rápido com sementes e castanhas, e deram início ao trabalho. A primeira coisa foi instalar os banheiros secos, mas essa era uma tarefa simples: as brigadas já levavam a estrutura desmontada, era só encaixar quando chegassem ao local. O modelo era feito em impressora 3D reaproveitando restos de plástico, e consistia em uma cabine a dois metros de altura do chão. A privada tinha uma divisória interna: a parte da frente era para xixi, que descia por um cano e ia direto para o solo. As fezes caíam em um latão acoplado embaixo da cabine. Cada um que usava o banheiro tinha que cobrir seus dejetos com uma camada de palha seca. Quando o latão atingisse metade da capacidade, era fechado e levado para ficar no sol por dois meses. O sistema de banheiro seco evitava a contaminação da água do subsolo e dos rios com matéria fecal e, de quebra, fornecia adubo natural para a agricultura. “Combosteira” era o apelido usado pelos pioneiros.
No início do Êxodo Urbano, esse foi o maior tabu para aqueles nascidos e criados nos grandes centros. Muitos se inscreviam no Programa levados pelo sonho bucólico de uma casa no campo, imaginando que a vida rural era uma espécie de jardinagem em grande escala. Quando descobriam que teriam que lidar com as próprias fezes de maneira mais íntima, não eram poucos os que surtavam e pediam para voltar ao ar poluído e ao caos das cidades.
Na hora do almoço, os três banheiros já estavam prontos, e os brigadistas finalmente fizeram uma boa refeição e tiraram uma soneca. À tarde, se dividiram em dois grupos: um responsável por montar as cisternas (que também já vinham pré-fabricadas), e outro encarregado de começar os trabalhos na terra.
Já fazia mais de treze anos desde o ataque com os agrotóxicos, tempo suficiente para a natureza começar a se regenerar. Por enquanto havia só uma vegetação rasteira, mas com o passar do tempo o bioma original do cerrado se recuperaria totalmente. Por isso, cerca de 80% da extensão da antiga plantação de soja seria deixada quase intocada, permitindo que as plantas, pássaros, abelhas e ventos voltassem a ocupar o espaço. Apesar da não-interferência humana, as espécies espontâneas não só podiam como deviam ser conhecidas, coletadas e utilizadas segundo as necessidades dos habitantes do local. Divididos em duplas, os pioneiros começaram a identificar quais eram comestíveis ou tinham propriedades medicinais, usando para isso o conhecimento acumulado em muitos anos de Programa e também um aplicativo que ajudava no reconhecimento das plantas – o que causava um certo desgosto em Seu Juarez, homem do campo de quase setenta anos que entrara para as brigadas após a morte da esposa.
– Precisa de máquina pra isso? – ele reclamava baixinho, enquanto examinava as ervas e rapidamente sentenciava: – Essa presta pra comer. Essa não presta pra comer.
No percurso, foram colhendo algumas amostras, preparadas em um refogado no jantar sob o céu forrado de estrelas. O primeiro dia de trabalho chegara ao fim, e a sensação geral era de satisfação e dever cumprido.
– Quantas plantas vocês conseguiram identificar hoje?
Gabriela consultou o celular:
– Foram 22 espécies, Jacira. 15 comestíveis e 7 com propriedades medicinais. Devemos achar mais coisa nos próximos dias, a diversidade botânica aqui é bem grande. Inclusive, eu não me surpreenderia se descobríssemos alguma espécie ainda não catalogada.
– Ótimo. Quanto tempo mais vocês precisam para terminar essa varredura inicial?
– Acho que em uma semana dá pra concluir.
– Beleza. Podemos manter esses mesmos dois grupos por enquanto? E o pessoal da construção já começa a levantar a cozinha comunitária amanhã.
Todos concordaram.
– Hoje, já peguei amostras de solo e fiz alguns testes no laboratório portátil. É uma terra difícil, ácida… mas nada que não tenhamos visto antes. E além do mais, se fosse fácil, nem teria graça, né?
Jacira se esticou de barriga para cima, um sinal de que o assunto “trabalho do dia” estava encerrado e eles podiam relaxar. Uma garrafa de vinho e um cigarro de palha circularam entre os pioneiros, que ora contavam causos de brigadas passadas, ora ficavam em silêncio admirando o céu.
– E pensar que, dez mil anos atrás, um grupo de pessoas pode ter se sentado neste mesmo lugar, cozinhando plantas coletadas na mata e olhando as estrelas exatamente como estamos fazendo agora.
– A gente tá voltando pra trás no tempo, João, é isso o que você quer dizer?
– Não colocaria assim, seu Juarez… Diria que estamos voltando no tempo para poder andar para frente de um jeito novo… por um caminho melhor.
– Vocês que são estudados falam de um jeito complicado de entender. Ir pra trás pra ir pra frente… – seu Juarez resmungou, alimentando o fogo com um galho seco.
– Não liga pro que o João fala, seu Juarez. Ele fica todo sentimental toda vez que olha prum céu estrelado. Coisa de moleque que nasceu e cresceu em condomínio fechado – provocou Gabriela.
João ignorou o comentário maldoso da colega, ela mesma cria digníssima do bairro carioca de Ipanema, e continuou o raciocínio:
– Há vários estudos que mostram que as florestas que acreditávamos serem paraísos intocados pelo homem, como a Amazônia, na verdade foram manejadas por povos muito antigos. E não só isso: esse manejo contribuiu para a biodiversidade da mata. Colocando de um outro jeito: de virgem a floresta virgem não tem nada.
Todos riram. O breve ataque de humor inesperado animou a conversa, tanto que Jacira voltou a sentar e emendou:
– E uma das tecnologias usadas por esses povos era o fogo. Eles literalmente incendiavam pedaços enormes de mata, mas em vez de causar destruição, isso ajudava a natureza. Eles sabiam usar o fogo de um jeito que já não sabemos mais. Um pouco deste conhecimento foi preservado por povos tradicionais: as roças de coivara dos quilombolas e de muitas nações indígenas… Mas a maior parte da sabedoria de fato se perdeu. Gosto de pensar que parte do nosso trabalho é tentar resgatar… ou melhor, redescobrir esses conhecimentos perdidos.
#
O novo ataque ao quilombo veio duas semanas depois, mas dessa vez estavam preparados. Os vigias avistaram o drone de longe e dispararam avisos para toda a comunidade. As “Cyber Dandaras” saíram do celeiro transformado em um quartel-general, onde estavam constantemente de plantão. Celulares em punho, interceptaram a comunicação com a base. Nisso, a nave começou a espirrar agrotóxico sobre o bananal e houve um início de pânico, que durou só alguns minutos. Logo as hackers assumiram o controle da situação e conseguiram interromper a chuva de veneno. Mais alguns minutos e o drone inimigo pousava suavemente na pracinha em frente à igreja. Olhos curiosos e amedrontados se reuniram em volta do temível artefato, que agora parecia um bicho dormindo, imóvel e vulnerável.
Tudo correu como o combinado: o galão foi retirado e levado para um depósito de rejeitos montado em uma área distante e não-povoada do quilombo. Era uma espécie de casinha em formato de cubo feita com os materiais mais resistentes que puderam encontrar. Ali, o veneno ficaria armazenado em segurança. João acompanhou o grupo responsável por essa tarefa.
– Um dia isso aqui ainda vai ser um museu – disse Márcia, apontando a construção.
– Museu de agrotóxico, Márcia?
– Não, meu filho, museu da nossa resistência.
Quando voltaram, a praça da igreja tinha se transformado. Pedaços do drone inimigo viraram bumerangues, tacos e brinquedos diversos nas mãos das crianças, eufóricas com a aventura que tinham acabado de viver.
– Tia Pâmela, você é um super herói? – perguntou uma menina de não mais que cinco anos, olhando embasbacada para a hackers de longos dreads.
– Sou nada disso, Aisha. Só fiz o que tinha que ser feito.
– Quando eu for grande, quero fazer essas coisas igual você, tia!
Pâmela pegou a garotinha no colo e lhe deu um beijo afetuoso nas bochechas gorduchas. Já no chão, Aisha saiu correndo atrás de um grupo de meninos que se preparava para lançar um foguete feito de uma lasca do drone.
O clima entre os adultos também era de entusiasmo. Moradores vindos de áreas afastadas do quilombo chegavam ávidos de saber as novidades. A história de como as quatro moças tinham capturado a nave inimiga corria de boca em boca, com eventuais distorções e exageros. E ali nascia uma nova lenda, uma nova história entre as muitas narrativas que há séculos construíam quem eles eram.
Zé trouxe mesas, cadeiras e uma dúzia de garrafas de cerveja gelada para a praça.
– Essas aqui são por minha conta! Mas só essas, viu?
Das casas da vila, saíram tabuleiros de doce, panelas com galinha refogada, bolos recém-tirados do forno e banana frita para comer como aperitivo. Logo também apareceram instrumentos musicais e a festa começou, sem que ninguém tivesse combinado ou organizado nada. Cantos muito antigos eram puxados ao ritmo das palmas, e uma roda de dança se abriu. João, muito tímido, não se atreveu a participar. Ficou apenas observando, maravilhado, a vida acontecer assim tão espontaneamente.
Nos dois meses seguintes, houve mais cinco ataques. Cada vez eram interrompidos com mais rapidez e eficácia. Até que simplesmente pararam de acontecer. Quando João foi embora, a casinha dos agrotóxicos já tinha virado museu.
#
As memórias do quilombo voltavam sempre no início ou no fim de um ciclo, e aquele já estava se encerrando. João observava o céu cor de laranja e reparava o quanto o cheiro daquele lugar havia mudado, o quanto a fragrância de terra e de mato havia ficado mais forte após onze meses de lida pesada e também de espera – grande parte do trabalho com a natureza era simplesmente aguardar que a natureza fizesse seu trabalho.
Uma parte do campo foi preparada usando a técnica de coivara, resquício do vasto conhecimento do uso do fogo que eles tentavam, com muito cuidado, retomar. João ficou responsável por coordenar outra área, onde foi aplicada a técnica de agrofloresta. Ali, na terra ainda bastante estéril, foram plantadas sementes de feijão-guandu, milho, abóbora e crotalária, espécies que se desenvolvem em poucos meses e com poucos nutrientes. Depois da colheita, seus galhos e raízes seriam transformados em adubo, tornando o terreno apto a receber cultivos mais exigentes. Eram as plantas pioneiras, nome que não por acaso era usado dentro do Programa para designar as pessoas que preparavam o terreno para as que vinham depois.
E já no dia seguinte os novos moradores começariam a chegar, retirantes do asfalto vindos dos municípios do entorno. No início do Êxodo Urbano, a perspectiva de trocar os confortos da cidade pela vida na roça atraiu especialmente jovens universitários de classe média, mas agora o público era bastante diverso, havendo um grande contingente vindo das periferias. Muitos eram netos de pessoas que haviam sido obrigadas a deixar seus pequenos lotes de terra por causa do avanço do agronegócio, e agora viam a possibilidade de voltar ao estilo de vida narrado com saudade pelos avós. Outros queriam apenas um horizonte para o qual olhar, longe do concreto cinza e duro dos bairros superpovoados.
João se perdia em reminiscências quando Gabriela sentou ao seu lado:
– E quais são seus planos? Vai partir para a nova descolônia?
– Sim. Essa vai ser um belo desafio. Interior do Pará… Você vem também?
– Não. Decidi que vou morar aqui.
– Pra sempre?
Ela assentiu.
– Essa me pegou de surpresa. Não te imaginava já se aposentando, Gabriela.
– Eu também não, não foi nada planejado. É que conforme os dias foram passando, comecei a sentir uma coisa boa sobre esse lugar… acho que algo muito bonito vai nascer aqui, algo que eu venho buscando há tanto tempo… Não sei explicar, é um pressentimento.
– Não faz muito sentido falar em pressentimento. O que vai nascer aqui é o que vocês quiserem que nasça aqui.
João tinha razão. O trabalho dos pioneiros era apenas garantir o mínimo necessário para o estabelecimento de uma Nova Célula Agriculturável: uma terra apta ao cultivo e uma infraestrutura básica com cisternas, banheiros, um alojamento simples e uma cozinha comunitária. O restante ficaria a cargo dos novos moradores, que teriam liberdade para construir a “descolônia agrícola” como achassem melhor. Em algumas, as famílias viviam bem distantes umas das outras, em casas espalhadas no meio do verde denso; em outras, havia uma espécie de centro onde as habitações se concentravam. E ainda havia algumas experiências em que a própria noção de casa fora subvertida, com os moradores vivendo em enormes residências coletivas em que tudo era partilhado, inclusive o cuidado com as crianças. E ainda nasceriam muitas outras formas de organização e sociabilidade, formas que ainda nem podiam ser imaginadas – mas que seriam criadas no convívio, na troca de saberes, nas discussões e nas disputas.
– Você vai fazer falta nas brigadas – ele sussurrou encostando a cabeça no ombro da companheira. Eles tinham trabalhado juntos em seis brigadas ao longo de dez anos. Tempo suficiente para formar uma forte amizade, pontuada por algumas trocas de farpas e uma boa dose de tensão sexual.
– Chega uma hora que a gente quer criar raízes – Gabriela respondeu, afagando os cabelos cacheados dele.
Naquela noite, dispensaram o quarto no alojamento e acamparam no meio da mata. Se emaranharam com avidez e ternura até o nascer do sol, quando os sons suaves da natureza foram encobertos pelo barulho do ônibus chacoalhando pela estrada de terra. João se despediu com um beijo demorado.
– Boa sorte na nova casa.
– Boa sorte na nova caminhada.
Contemplando a paisagem do cerrado pela janela do veículo, João se deu conta de que aquele pedaço de lata que vivia pifando e sua velha barraca de acampar eram as coisas mais próximas a uma casa que ele tivera há mais de uma década. Ou talvez a casa fosse o mundo todo pra lá do vidro. Será que algum dia ele também criaria raízes? E onde no mundo-casa seria essa morada? Impossível saber agora. Por enquanto, não estava pronto para se estabelecer definitivamente em um lugar. Ainda havia terras degradadas, contaminadas e violentadas precisando de cura.
Pegou no sono com o sacolejo do ônibus.