SISTEMA PRESIDIÁRIO

Ele piscava com força para despertar. O ambiente extremamente claro o fazia exteriorizar sua fotofobia.

“Bem-vindo de volta, Daniel!”

A voz reverberava de algum lugar acima do ponto de visão que Daniel conseguia de fato enxergar e ecoava fundo em seus tímpanos. Ele encarava os próprios pés e mantinha erguida uma das mãos, impedindo que a luz da lâmpada chegasse direto a seus olhos, enquanto isso, a outra coçava suas pálpebras. 

“Senhor Daniel,” a voz recomeçou, profunda, invisível, dentro de sua própria cabeça. “Você conseguiu provar em uma simulação que está pronto para retornar à sociedade. Meus parabéns!” Cada sílaba ecoava alto em seus tímpanos, quase o machucando. “Pode acompanhá-lo até a saída.”

Passos ecoaram do ambiente para dentro dele, e Daniel viu um par de coturnos de cano alto que davam em uma calça marrom se aproximando da cama em que estava sentado. Ele fez menção de subir os olhos, mas qualquer coisa acima dos joelhos estava completamente ofuscada. Diante de seus olhos apareceu então uma mão, provavelmente vinda da pessoa à sua frente e, sem ainda entender o porquê, ele a apertou.

“A partir de agora você é um homem livre!” Uma voz distinta lhe disse, já sem ecoar tanto em sua cabeça. De onde conhecia aquela voz? O homem puxou-o firmemente, forçando-o a se levantar da cama dura. Andando recurvado e olhando para o chão, Daniel sentia alguém o conduzindo com uma mão em suas costas de forma grave e intensa, como se mal pudesse esperar para jogar Daniel para fora daquele lugar.

Pouco a pouco se percebia capaz de enxergar ao seu redor. Estava de volta aos corredores da penitenciária, sendo conduzido por um guarda até uma bancada alta.

“Por aqui, detento”, reconheceu a voz do guarda que o conduzia, era a voz de Adonias. Algo na impessoalidade de sua frase o incomodou, mas, antes que pudesse falar algo além de um murmúrio, outra voz lhe pediu para assinar aqui e ali e, sem esperar consentimento, a mão, cujo dono Daniel ainda não conseguia enxergar levou a sua até o local da assinatura, separou o seu indicador dos outros dedos e pressionou-o contra o aparelho, levantou a sua mão, mudou de página, pressionou o novamente, outra página, e, por fim, pressionou o seu dedo na tela.

“Aqui estão seus pertences.” Enquanto Daniel piscava, o aparelho burocrático desaparecia para dentro do recinto que a bancada protegia e um saco a vácuo se materializava em seu lugar com roupas e sapatos. Daniel se apoiou por alguns instantes na bancada. Sentia-se um pouco tonto e respirava fundo, como se estivesse recuperando o fôlego depois de correr atrás de algum chip-hacker por vários quarteirões. Então, outra voz pareceu direcionar-se a ele.

“Você pode se sentar ali, demora um tempo até retornar ao mundo real por completo.”

Ainda olhando para o chão e protegendo os olhos com uma das mãos, Daniel procurou pela dona da voz.

“Obrigado,” murmurou após encontrar as pernas da guarda à entrada do corredor. Sua voz estava grave e sua garganta enrijecida, como se não tivesse a usado por vários meses. E talvez não tivesse, não tinha como saber. Próximo da guarda, ele também localizou uma fileira de quatro cadeiras vazias e sentou-se na mais ao canto, abaixando-se e pressionando forte os punhos contra os olhos.

Ficou assim por um tempo, sem pensar. Sentia-se como de ressaca, meio bêbado. A pressão parecia aumentar a dor de cabeça e a tontura. Depois de uns minutos, começou a abrir os olhos, pouco a pouco, acostumando-se com a luz. Estava na recepção da penitenciária. Exceto pela guarda de prontidão no corredor, dois recepcionistas e ele, agora ex-detento, a salinha estava vazia.

Lembrava-se de ter passado por aquela sala três anos atrás quando havia saído da prisão, ou quando achava que havia saído. Sua lembrança era cheia de sentimentos, muito mais que imagens. Como se tudo tivesse sido um sonho. E de certa forma havia sido, afinal. Lembrava-se da sensação de ser identificado e passar pela porta de vidro como um homem livre. Ele tinha andado para longe dali e não tinha olhado para trás. Tinha ido para a casa dos seus pais, que o esperavam com uma festa de boas-vindas com churrasco, cerveja e bolo. Agora que as lembranças voltavam, a ideia de uma festa para um ex-detento não lhe parecia a melhor das ideias. No dia, algumas pessoas que não via havia mais de dez anos lhe perguntavam como tinha sido na prisão, se tinha planos para o futuro. 

Em seguida, alguém lhe arranjou um emprego numa lojinha no centro. Ele vendia… coisas… que coisas? Daniel trabalhava nessa lojinha até tarde e pegava o ônibus de volta para a casa dos seus pais. Ele lembrava de sentir-se extremamente cansado no ônibus de volta para casa. Certa vez foi roubado naquele ônibus, dois homens aproximaram-se no fundo do ônibus e fizeram-no transferir seu pouco dinheiro por uma maquininha. Quando foi à delegacia, o policial de plantão prendeu-o por algum motivo estúpido, alguém havia o reconhecido por ter cometido outro crime.

Num flash, cada detalhe nauseante daquela noite lhe veio à mente. Era tarde, bem tarde, a delegacia estava escura por conta de uma lâmpada queimada e ele estava de pé na recepção para fazer um boletim de ocorrência. Pela porta de vidro entrou uma mulher, branca, vinte e cinco anos, roupas rasgadas, maquiagem borrada e cabelos bagunçados. Havia algo cinemático em sua entrada. Talvez o seu olhar, ou a sua expressão facial, talvez ambos, enchiam Daniel de repulsa. Não dela, não, repulsa de si mesmo. Não conseguiu ler o nome ou o antecedente dela. Ela levantou o braço, em câmera lenta, e com seu indicador apontou para o rosto de Daniel. Todos os rostos da delegacia o encararam simultaneamente. Rostos despidos de qualquer traço. De alguma forma, porém, ele se lembrava de sentir expresso neles o ódio intenso que precedeu as palavras da mulher:

“Estuprador!”

Ele sentiu um calafrio passar pelo seu corpo. Abriu os olhos. Com as lembranças da simulação deixadas de lado, Daniel se levantou com seus pertences e entrou em uma portinha que declarava “Masculino” em uma plaquinha à altura da cabeça. O banheiro estava limpo, exalava um cheiro nostálgico de desinfetante de lavanda, e ele percebeu uma necessidade extrema de urinar. Foi quase correndo até o primeiro mictório, jogando a sacola com seus pertences no lavatório no caminho, levantou o seu pijama hospitalar até a altura do peito e, lacrimejando com uma dor intensa, começou a expelir a urina de cor escura. Seria efeito da simulação? Não se lembrava de sentir nada disso antes de acordar. Mas há quanto tempo não acordava de verdade? Não sabia. Alguns detentos, recordou-se, voltavam após serem reprovados pelo sistema. Alguns voltavam no dia seguinte, outros desapareciam por semanas e todo mundo achava que haviam passado no programa e já estavam reestabelecendo as suas vidas, mas então apareciam no refeitório ou no pátio extremamente subnutridos e deprimidos. A maior parte dos que voltavam não parecia querer comentar muito sobre a simulação. O restante contribuía para uma certa mitologia acerca do processo.

“Tudo o que você quer depois de acordar é bater um barro”, lembrou Daniel da conversa com o recém reprovado colega de cela Marquinho. “Sentar no vaso, sabe? Relaxar e botar pra fora tudo que você comeu na sua vida imaginária? Todo o sorvete que eu tomei de alguma forma me deixou com diarreia, entende?”

Ele havia ficado fora por uma semana e era intolerante a lactose. Outros detentos diziam que esse tipo de coisa era invenção, era loucura, ou talvez uma forma de chamar atenção, e que, por agirem assim, não tinham passado na simulação. Ruan, outro colega de cela que também já tinha sido reprovado, retrucou, “Se você só toma soro, como que o sorvete te deixou de caganeira? Você é burro?”

“Eu sei lá, cara. Se eu fosse um especialista eu te falava!”

“Se tava tudo na sua cabeça, me diz como que te deu diarreia?”

“Cara, se eu fosse um especialista naquela porcaria, eu explicava.” Ele falou cada palavra hostil e pausadamente. “Mas aí te falava também o motivo de você ser reprovado no primeiro dia”. Eles se encararam como se analisassem as implicações de brigarem dentro da cela durante o dia. Então Marquinho estalou a língua no céu da boca e Ruan soltou a respiração forçosamente, desistindo. Os outros quinze presos não pareceram notar. Não que detentos não brigassem frequentemente quando os guardas estavam distraídos ou quando estavam em lugares sem câmeras. Um soco no estômago ou nos testículos sempre rolava na cela, ou às vezes na porta do banheiro, mas um guarda sempre gritava algo como, “Pode parar de palhaçada, bando de merda!”, e os dois presos se afastavam, prometendo vingança através de olhares enfurecidos. Essa vingança nem sempre acontecia. Outras vezes um deles era encontrado morto e nenhuma das quinze ou vinte pessoas que ocupavam a mesma cela sabia quem o tinha matado. A discussão não deu em nada, mas Marquinho estava intencionalmente provocando Ruan, um dos que não apreciavam falar da experiência na simulação.

Uma convenção, talvez infundada apesar da certeza de sua veracidade pela maior parte dos detentos, era que se você fosse para a simulação e te julgassem mais perigoso do que perceberam antes, você poderia ser enviado para uma prisão de segurança máxima, ou até mesmo receber pena de morte. Algo que todos pensavam ter acontecido com o Branco. Como era possível que um homem tão repugnante fosse solto? Estremeceu um pouco ao se lembrar do desgraçado. Logo na primeira semana em que Daniel chegou ao presídio, Branco deixou-o com o nariz torto, provavelmente para o resto da vida.

“Pronto, negão, e eu que achei que seu nariz não podia ficar pior!”, ele havia lhe dito depois de socá-lo o estômago com um punho e o nariz com o outro. Adonias, que para ele ainda era apenas Santos na época, havia visto a situação e o levou até a enfermaria, enquanto outro guarda arrastava com esforço o corpo gigantesco de Branco para longe. Ele já tinha sentido dores piores. O nariz torto quase não o incomodava. O que lhe doía os nervos acerca de Branco não era a quantidade de sangue que ele fez jorrar do nariz de Daniel, mas a lembrança de seu sorriso amarelado. Um sorriso que notava desde cedo, o sorriso da impunidade. Geralmente estavam certos. Um sorriso que lhe lembrava o motivo pelo qual havia sido jogado naquele lugar.

Daniel cobriu-se com o pijama hospitalar e foi para o lavatório. Lá ele olhou para o homem esquelético refletido à sua frente. Tocou seu rosto, suas bochechas caídas, seus olhos fundos e amarelados, a lembrança de Branco carimbada em seu nariz torto. Ao seu toque, sua pele, extremamente seca, se soltava e descascava. Sentia-se vinte anos mais velho. Seu cabelo, agora curto, não estava mais trançado. Alguém tinha o cortado enquanto dormia. Não, não. Ele sorriu, dentes amarelados o receberam de forma um tanto quanto assustadora. Isso tinha acontecido na simulação, se lembrou, seu cabelo havia crescido e ele o tinha trançado. Ali todos tinham cabelos curtos “para manter o padrão”, como diziam nas palestras que eram obrigados a assistir. Era isso. Ele se abaixou e levou ao rosto a água gelada da pia automática baixa, feita para alguém vinte ou trinta centímetros menor que ele. Baixou então a cabeça à altura da torneira, pegou mais água com a mão e molhou a nuca e o cabelo, esperando a água se infiltrar lentamente pelos fios espessos até alcançar sua pele e o permitir sentir o frescor intenso. Precisava disso. Precisava sentir, viver coisas reais. Sair da simulação. Muito antes do momento em que a água seria suficiente para que ele pudesse senti-la pela pele da cabeça, a torneira se desligou e não forneceu mais água.

“Bando de mão-de-vaca”, ele disse de pé, em frente ao espelho. O pijama era muito largo, e seu peito magricela ressaltava os possíveis meses que havia passado dentro do universo da simulação. Estava muito mais magro que os mendigos da cidade. Seus braços finos, com uma boa quantidade de pele flácida, não se pareciam nada com aqueles que se lembrava ter cultivado em seus dez anos de prisão. Não que ele tivesse sido muito acima do peso, mas nunca tinha sido realmente magrelo, ainda mais depois de ser voluntário na pesquisa de comportamento. Foi quase um ano de injeções diárias de algo que fazia com que Daniel engordasse e ficasse mais calmo. “Metamorfose bovina”, comentavam os presos, mesmo aqueles que também participavam da pesquisa. Em troca, os participantes teriam a pena reduzida na mesma quantidade de tempo que servissem ao voluntariado e, se o estudo fosse pra frente e mostrasse bons resultados, os presos teriam muito mais chances de passar na simulação. Alguns detentos tinham ganhado cinquenta, sessenta quilos. Ele tinha engordado trinta quilos no processo. “Valeu a pena”, pensou enquanto via no espelho um homem que havia perdido muito mais quilos que os trinta ganhos, quase como se tivesse acabado de passar por algum tratamento de emagrecimento rápido, antes da cirurgia plástica. Só que, para ele, não teria plástica coisa nenhuma. Talvez isso explicasse o tom impessoal de Adonias. Ou, talvez, tenha sido fachada, como nos últimos tempos. Provavelmente a segunda opção.

O nariz torto chamou a atenção de Daniel novamente. Não o nariz, de fato, mas a lembrança de Adonias tentando colocá-lo no lugar.

“Infelizmente não teremos médicos de plantão aqui nesse mês, Daniel”, disse-lhe Adonias, enquanto conferia o nome do detento na tarja em seu peito. Estavam sentados na salinha que era a enfermaria e o guarda lhe entregou um pano e o fez estancar o sangue que jorrava do seu nariz. “Como você não está morrendo, não posso pedir um médico emergencial, burocracia, entende? Mas eu sei um pouco de enfermagem e posso cuidar do seu nariz.” Havia certo cuidado na fala do guarda. Era como se ele esperasse que a qualquer momento o preso fosse começar a chorar, Daniel pensou com certa indignação. Naquele momento, ele não tinha pensado muito sobre a forma que Adonias o tratava, estava cego pelo ódio que sentia por Branco. Que ainda sente. Seu olhar no espelho era repleto de fúria. Sentiu-se tonto e apoiou-se com as duas mãos no lavatório. Ao menos, nunca mais veria aquele homem. Os detentos disseram que ele estava saindo para tentar a simulação, mas que era maluco por querer tal coisa porque, afinal, se não o dessem uma pena de morte, no mínimo iriam jogá-lo em uma prisão de segurança máxima. Talvez a segunda opção não fosse tão má assim, talvez fosse melhor do que manter-se no mesmo lugar. Se tivesse menos que dez presos por metro quadrado, já teria valido a pena. 

“Maldito sistema”, retrucou sua cara esquelética.

Sua náusea diminuía, então começou a retirar o pijama, algo que foi mais difícil do que esperava. Seus braços não se dobravam bem e cada centímetro a mais percorrido pelas suas mãos para soltar o nó do pijama em sua nuca parecia lhe dar uma facada em algum músculo enrijecido. Por fim, conseguiu puxar a ponta do nó borboleta que o prendia ao pijama e deixou-o cair aos seus pés.

“Puta que pariu…”

A visão do seu corpo nu era assustadora. Suas costelas completamente à mostra eram cobertas por uma fina camada de pele amarelada que Daniel não sabia se reconhecia como sua. Seus mamilos haviam descido alguns centímetros, amparados por uma pele flácida que antes havia sido preenchida por músculos e gordura. Sua barriga completamente retraída revelava cada detalhe antes escondido da curvatura de sua bacia. Seu estado deplorável não se igualava ao de nenhum outro preso que já vira pós simulação.

Mas, bem, eles haviam retornado para a prisão, Daniel pensou enquanto dava de ombros para o esqueleto que o encarava. Ao menos ele estava saindo dela.

Abriu o plástico e vestiu com certa dificuldade a roupa seca. Pareciam ser as mesmas com as quais fora preso. Tentou lembrar-se da roupa do dia. Não estava com o uniforme da loja? Era uma camisa preta como essa, mas talvez ela tivesse rasgado depois dos socos e pontapés. A acusação mal tinha saído da boca da mulher e três homens saltaram para cima de Daniel. Detrás dele, pernas o derrubavam enquanto alguém retorcia seu braço esquerdo com força e um braço o enforcava, o imobilizando por completo.

“Não… não fui… eu.”, ele tossia enquanto se esforçava para respirar. Suas declarações de inocência diminuíam de intensidade conforme seu corpo era contido, socado e chutado. Apesar de não se lembrar mais dos rostos daquelas pessoas, Daniel sentia o ódio delas de tal forma que, antes de apagar, já não tinha certeza se era mesmo inocente.

Acordou numa cela. Seu corpo rememorava o espancamento que tinha recebido. Ficou preso alguns meses antes de ser julgado, ou talvez apenas por algumas semanas, não se lembrava ao certo. No julgamento, o depoimento da mulher lhe dava nojo, nojo de si mesmo. O júri também não acreditava em sua inocência. Culpado. Trinta e dois anos e quatro meses de pena.

“O que eu fiz pra merecer isso?”

Daniel encarava o lavatório. Relembrando o olhar da mulher, o ódio, o nojo que sentia de Daniel, parte dele não acreditava que realmente não havia a estuprado. Parte dele sabia que o tempo que passaria na cadeia não seria suficiente para apagar aquilo que tinha feito.

Porém, contrariando suas crenças, depois de alguns meses ele foi solto. Outra pessoa foi posta em seu lugar. Antes do mal entendido ter sido resolvido, entretanto, seus pais haviam falecido. Sua mãe tinha sofrido um AVC e seu pai havia cometido suicídio algumas semanas depois. Ele agora estava dormindo no sofá de… no sofá de alguém. O cheiro de mofo vindo do sofá e do cobertor ainda era vívido em sua memória. Era um sofá na casa de Fábio, se recordou, um antigo amigo de seu pai. Além disso, havia algo na forma como o homem o olhava, como se perguntasse quanto tempo demoraria até que Daniel fizesse alguma merda.

“Ah se ele me visse agora”, sorriu de volta a caveira que era seu rosto. “Se me visse saindo agor…”

Algo como um soco acertou o estômago vazio. Se sentiu completamente nauseado, e agora seu peito e sua garganta queimavam dolorosamente enquanto sentia o gosto ácido de sua bílis. Ele se abaixou e cuspiu o vômito no lavatório, se é que podia chamar de vômito a saliva levemente saturada pelo ácido estomacal. A dores musculares se intensificavam enquanto tentava se sustentar, e as suas pernas não pareciam mais capazes de mantê-lo de pé. Então desistiu.

No chão, ele não tinha condições de analisar se o líquido sob seu rosto era urina ou água. Agora, a gravidade puxando seu corpo parecia muito mais forte. O ambiente não permanecia parado, as paredes e os mictórios iam de um lado para o outro e o lavatório se afastava em um movimento vertiginoso. Fechou os olhos. Ao menos o chão era real, pensou. Tinha de se ater ao real. Mesmo que o real fosse a água, desejava que fosse água, que escorria pelo chão. Mesmo que fosse urina. Tinha que se ater a ela.

“Não é real… Não é!”

Mesmo inocentado, ele era o que era. Ex-detento e preto e, consequentemente, perigoso.

Depois de dormir alguns meses no Fábio sem conseguir emprego nem renda, absolutamente nenhum real, ele disse que Daniel teria que sair de sua casa.

“Os vizinhos estão falando… você entende, né?”

Então foi morar na rua. Pedia esmola, comia quando podia e dormia onde dava. Ele recebia bem menos que outros mendigos. Sabia o motivo, às vezes liam em voz alta. “Daniel Gonçalves da Silva”, “desempregado”, “dez anos de prisão por agressão”, e então pareciam enfatizar enquanto passavam, “indiciado por estupro”. Às vezes só visualizavam os seus antecedentes e passavam apertando o passo. Por vezes, meninos roubavam seu dinheiro enquanto cochilava. Passavam um aparelho clonado em seu pulso que falsificava seu consentimento e Daniel acordava com o bip da máquina. Não tinha tempo de tomar fôlego nenhum, apenas saía correndo atrás deles. Corria até sentir uma dor exorbitante em seu peito, momento que parava, completamente ofegante, vencido. Algumas vezes ele pegava um, dava um tapa forte na nuca dele e o fazia transferir de volta o que havia sido roubado. Às vezes, quando tinha ganho um pouco mais que o suficiente, até deixava o chip-hacker ficar com um trocado, e isso acabou gerando algumas pequenas amizades. Daniel mesmo nunca roubou. Várias vezes sentia, porém, uma urgência, um desejo quase incontrolável, de roubar meio sanduíche esquecido em uma mesa, mas sempre resistia e pedia humildemente, mesmo correndo o risco de não receber.

Algumas noites, ocorreu de bêbados agredirem Daniel. Com o tempo aprendeu a evitá-los. Aprendeu quais eram as ruas que ofereciam mais chance de esmolas e que eram mais seguras. Fez amizade com a maior parte dos chip-hackers do centro, que deixaram de roubá-lo. Em vez disso, ofereciam comida, às vezes, drogas. Certa noite, trouxeram um alucinógeno do qual nunca tinha ouvido falar. Disseram que alguém tinha dado pra eles, um tal de Pitaco, lembrou-se, e que era a melhor bala que já tinham chupado. Disseram que a alucinação os deixava como que conectados nos receptores virtuais hiperrealísticos sem auxílio algum da tecnologia. Eles podiam sumir em outro universo por dias deitados no chão, embaixo de qualquer cobertura, só para evitar a chuva. Podiam comer bem, podiam beber à vontade, podiam rever as suas mães, se quisessem. Tinham controle total do alucinógeno e poderiam sair da trip quando quisessem, igual saíam do ônibus. Era o que prometiam. Daniel era analógico, eles não. Usavam tudo e viviam da forma que queriam. Mas ele não se importava em ser analógico. Preferia se manter consciente em sua realidade que ficar no chão babando por três dias até que o efeito passasse, como via frequentemente acontecer com várias pessoas em situação de rua. Então, consciente em uma das ruas que costumava pedir esmola para o almoço, viu Adonias reaparecer em sua vida.

“Daniel?”, ele disse, incerto.

“Um troco pro almoço, por favor”, Daniel havia respondido, estendendo o braço direito com a palma aberta.

“Daniel, sou eu, o Santos. Guarda Adonias Santos.” Ele pegou seu braço, mas não transferiu dinheiro algum. Em vez disso, puxou-o fortemente, obrigando Daniel a se levantar. Sem entender, deixou-se levantar e repetiu para o homem, cujo rosto lhe era razoavelmente familiar:

“Um troco pro almoço, por favor”, disse fazendo uma expressão que gerava compaixão, enquanto lia “Adonias Santos”, “Guarda Penitenciário”, “Trinta e cinco anos”, entre outras informações.

“Vem comigo, eu vou te ajudar”, ele disse, puxando-o pela calçada. Era uma situação nova para Daniel, porque as pessoas evitavam tocar nele. Assim, aceitou ser conduzido por esse tal de Santos que parecia conhecê-lo. O homem levou-o até um carro completamente imaculado, exceto pelo mendigo, e foram levados pelo centro da cidade. Havia meses que não entrava em algum meio de transporte. Seu cheiro incomodava os outros passageiros, mas era da leitura dos antecedentes de Daniel que sentiam nojo. No carro, Adonias Santos parecia não perceber o odor de Daniel. Mais que isso, enquanto o carro automático seguia seu caminho, ele observava Daniel, que, em vez do nojo comumente percebido, sentia compaixão. A casa de Adonias estava imaculada. Daniel não se atrevia a sentar no sofá, mas aceitou tomar banho, regalia à qual não tinha acesso desde que proibiram a entrada nas fontes da Liberdade.

Adonias lhe arrumou toalha e roupas que ele afirmou não usar mais. Não pareciam nem um pouco gastas. Colocou-o em um quarto de hóspedes que, ao contrário da casa de Fábio, não tinha nada escondido. Todos os novos aparelhos, que Daniel não fazia ideia de como funcionavam estavam, ao seu alcance. Se quisesse, poderia ter furtado todos, ou todos os que conseguisse carregar. Adonias não parecia temer nada disso vindo de Daniel.

Na manhã seguinte, vendo Adonias de uniforme, Daniel se lembrou do homem que havia consertado seu nariz. Ou, ao menos, tentado consertar.

“Tudo bem, tá perdoado”, brincou Adonias. Aí estava um tom de voz que Daniel não achava que ouviria novamente. “Nunca conversamos direito, né? Então, não tem problema.”

“Certo.”

Adonias saiu para o trabalho. Ele podia usar o que quisesse da casa. O projetor que Adonias usou no dia anterior era de algum modelo que Daniel já havia visto, provavelmente no centro, mas não sabia usá-lo. O sofá era antigo, ou pelo menos tinha funções antigas, dois braços, três lugares, semi-reclinável. A geladeira de material translúcido também não parecia tão complexa. Não precisava mexer nos robôs de limpeza ou nos robôs de estimação. Tampouco precisava acessar alguma rede. Não precisava de diversão na rua, “por que precisaria ali?”, se perguntou. Então pegou uma garrafa de soy e passou o restante do dia sentado no sofá, vez ou outra, ia até a geladeira pegar alguma comida.

Adonias não queria saber de Daniel indo embora. Ao ouvir que não teria como pagá-lo, o guarda simplesmente dava de ombros e dizia que, quando precisasse de algum favor Daniel o faria e ficariam quites, não precisava se preocupar. Daniel foi ensinado a acessar os robôs da casa, dos mais simples de limpeza aos mais complexos e teve mais dificuldades de entender a sua forma de comando, como com os projetores de realidade aumentada. Os anos de prisão e de rua o enferrujaram em relação a essas tecnologias. Nenhuma delas pareciam-lhe úteis para a sua sobrevivência.

Daniel começou, então, a ajudar Adonias com seus afazeres. Limpava a casa, ou melhor, fazia com que os robôs a limpasse. Deixava o robô Golias, que funcionava como um cachorro, sempre carregado em alguma função que não o incomodasse. Nunca havia sido um homem de pets. Vez ou outra entregava algum produto de Adonias na região. Eram sabonetes artesanais feitos pela tia do guarda e que ele a ajudava a vender. Daniel sentia estar retribuindo um pouco a sua estadia, mas queria mais. Nada pagaria a fé que Adonias tinha em Daniel. Nada.

Um mês depois da chegada de Daniel naquela casa, Adonias preparou um jantar extravagante que ele chamou de “jantarzinho”, mas que tinha coisas que pareciam caras só de olhar. Quanto havia custado e como poderia pagá-lo de volta não eram perguntas que Adonias fosse responder, não importava a insistência de Daniel.

“Come!”, sussurrou asperamente. “Come logo a porcaria do camarão e para de me encher o saco.” Daniel se serviu então, ainda sem jeito. “É só um ensopado de camarão de soja à muranga. Relaxa. É gostoso, nem é caro assim.”

Era delicioso. Nada comparado aos almoços servidos em lugar nenhum em que havia comido nos últimos anos. Talvez, mesmo antes de seu tempo na prisão, camarão de verdade não fosse tão gostoso assim.

“Gostoso, né?”

“Uhum!”, foi o que conseguiu responder de boca cheia ao sorriso que lhe foi dado. Um sorriso sincero. Vendo aquele sorriso, aquele olhar, finalmente entendeu o motivo pelo qual estava ali, naquela noite, sentado à mesa com aquele homem. Percebeu também que isso tornaria ainda mais impossível retribuir tudo o que estava recebendo. Daniel reconheceu o sentimento que estava se espalhando por seu corpo, o calor que vinha sentindo havia dias, o amor que era capaz de sentir espelhado em si sempre que estava próximo de Adonias.

“Tudo está bem agora”, deixou escapar antes que pudesse se controlar. Adonias continuou o olhando, sorrindo e acenando e, como se lesse seus pensamentos, acariciou a sua mão.

“Tudo vai continuar bem enquanto a gente estiver junto.”

Por poucos meses, a rotina de Daniel se ateve em manter os robôs da casa funcionando, fazer as entregas de Adonias e viver uma sensação forte e calorosa que não se lembrava jamais ter vivido antes. Não somente pelo sexo, mas o amor que Adonias sentia por ele fazia Daniel amá-lo e amar a si mesmo de tal forma que não sabia explicar. Podia ser feliz o quanto quisesse, não precisava se incomodar com os anos na rua e na cadeia e, na verdade, já nem se lembrava bem deles. Como se as lembranças dos terríveis momentos pelos quais havia passado estivessem sendo deletadas e simultaneamente substituídas por dias felizes e simples com o homem que o amava.

Então, a prisão. Novamente. Daniel foi indiciado por tráfico por carregar para cima e para baixo uma substância ilícita diluída em sabonetes. Adonias foi indiciado junto. Ele suplicava que não sabia de nada, e Daniel, de alguma forma, sentia que o homem dizia verdade. Então, Daniel convenceu Adonias a entregar a mulher, sua tia traficante, e assim reduziram as suas penas.

“Vai ficar tudo bem”, Daniel disse, já no refeitório da cadeia, meses depois de serem julgados culpados. Daniel buscava aplacar um Adonias frio, distinto daquele que o ajudou a… distinto daquele que o ajudou. Era fachada, Daniel repetia para si mesmo. Ali, era melhor que não fossem um casal. A necessidade disso se provou com o reencontro com Branco. No pátio, convulsionando após um chute pelas costas em seus testículos, Daniel olhou para trás e viu o homem que havia quebrado o seu nariz séculos atrás.

“E aí, negão. Que nariz horrível!”, ele sorriu. Nenhum guarda parecia ter visto a cena. Adonias, que olhava para longe, não iria se envolver tampouco. Era a hora de pagá-lo de volta. Cerrou os punhos e se levantou num pulo, pronto pra briga. O homem gigantesco mostrava os dentes no sorriso odioso que se lembrava. Impulsionou seu braço direito para trás. E… no meio do movimento, desistiu. Olhou ao redor. Vários rostos indistinguíveis agora o observavam, guardas e presos. Não valeria a pena, percebeu. Não adiantava lutar contra aquilo.

Vendo a sua falta de vontade de lutar, Branco sorriu ainda mais abertamente, virou-se de costas e, caminhando lentamente, misturou-se à multidão de presos que tomavam sol. Adonias também estava lá. Se ele estivesse por perto, se não fosse aquela barreira de proteção que criaram, Branco com certeza não os deixaria em paz. Daniel sentia isso enquanto a dor do golpe desaparecia por completo.

Outras provocações de Branco aconteceram por algumas semanas. O ódio que sentia pelo homem era avassalador, mas a sua força de vontade era ainda maior, e conseguia não reagir aos insultos, socos e chutes que levava. Adonias trocava algumas palavras com Daniel, mas sempre dentro daquela barreira invisível, a fachada que era necessária. Então os dias se passavam e tudo o que pensava era em como iria reconstruir a sua vida após a prisão. Poderia trabalhar em alguma lojinha e, mesmo que trabalhasse até tarde da noite, teria alguém esperando por ele. Cheiro de mijo chegava ao nariz de Daniel e uma parte dele sabia que tudo iria terminar bem. Vendo Adonias, mesmo sem identificar mais o amor espelhado que sentia antes da prisão, Daniel ainda era capaz de amá-lo.

“Tudo vai continuar bem enquanto… enquanto a gente estiver junto.”

A urina na qual recobrava a consciência parecia mais real agora. As paredes e o teto haviam se estabilizado. Nada mais se movia. A vertigem tinha passado, mas de sua boca aberta escorria saliva e bílis direto para a poça de urina no chão.

“Ah…”

Se levantou aos poucos. A vertigem havia passado, mas seu corpo ainda doía e cada músculo implorava que não precisasse levantá-lo. Nu, ele não sabia se aquela urina era sua ou se a poça havia sempre sido daquele tamanho. Mesmo assim, estava sujo, fedia, e se direcionou a um box com chuveiro. Apertou o botão e a mensagem de “Não desperdice água” deu lugar a um marcador de segundos. 

59, 58, 57…

Se lavou com a água gelada. Sentia suas mãos percorrerem o corpo quase irreconhecível, mas a parede espelhada do box não o ajudava a se identificar. Se algo havia mudado durante a simulação, era o seu corpo. Tinha que descobrir que dia era. Agora conseguia distinguir suas lembranças melhor, estava confiante que os efeitos da simulação estavam passando.

O lado de fora a recepção continuava a mesma. Não devia ter passado mais que dez ou vinte minutos desde que havia entrado no banheiro. Acenou levemente para os guardas, a mulher ainda de pé ao lado do corredor, o homem e a mulher recepcionista, e seus nomes, profissão e antecedentes apareceram de imediato no canto do olho direito. Então, quase no topo do seu ponto de visão, finalmente viu a data. Três meses na simulação, fez as contas. Sua conta bancária, também notou, provavelmente seria suficiente para ir até a casa dos seus pais. Verificou suas informações. Seu nome vinha logo acima do aviso inapropriado “Desempregado”, seguido por “10 anos, 2 meses e 25 dias de prisão” e, em letras maiúsculas, “APROVADO PELO SISTEMA”. Encostou o braço chipado no leitor da porta, que se abriu após um instante, e saiu. 





Outros Artigos desta Edição

Anterior Próxima