UNIÃO
Podem me chamar de radical. De todas as coisas que eu quero, ser radical é, de longe, minha preferida. A União pode me acusar de terrorismo, na verdade ela pode me acusar de muitas coisas. Mas como serei terrorista se nunca fiz nada além de socar o travesseiro até dormir? É difícil não ser radical quando eles invadem seu país, é mais difícil ainda fazer algo contra os mais fortes.
Ontem eu vi um grupo de soldados espancando um sujeito a dez metros do meu trabalho. O motivo? Não sei. Ele parecia normal, sua roupa estava impecável, seu cabelo milimetricamente cortado. Escorria sangue de sua boca e manchava os nós dos dedos dos soldados.
Não sei direito como o resto do país está. As telas espalhadas pela cidade mostram os governantes da União, todos sorriem como se tivessem ganhado na loteria. Sinto saudades da loteria, fazer minha fé e perder tudo no bolões, tudo exceto a esperança. Às vezes ainda me pergunto de que ela vale nos dias de hoje.
Me sentia mais seguro com a nave. Chego a sentir saudade da insignificância que um corpo alienígena causa nas pessoas.
Às vezes me pergunto como seria se tivesse chegado em outro lugar. Se tivesse parado sobre os Estados Unidos, será que ele seria colonizado como fomos? Queria ter criatividade para pensar em histórias alternativas, onde o ser humano dava a volta por cima e os colocavam pra correr sem precisar de toda essa palhaçada de União.
“Os colocavam” é meio que um tiro no escuro, até hoje não se sabe quantos são. As chances de serem milhares são as mesmas de serem apenas um ou ninguém. Pelo menos ninguém vivo.
Pouco me perguntei sobre o motivo. Não me parece algo a ser questionado, não mais. Coisas grandes tem seus motivos de ser. O mundo parou, atacou, destruiu boa parte do norte no processo, o nosso norte e parou novamente. Quando digo “parou” é parou mesmo. As guerras não são nem mais cogitadas, pelo menos não como acontecia antigamente. É fácil entender o motivo quando algo indestrutível e medindo um quilômetro e meio de altura surge em seu planeta.
Não sei se os dados entregues pelas telas são reais. Às vezes gosto de achar que são. Me sinto confortável. A poluição nos oceanos diminuiu, as calotas polares pararam de derreter. Penso que a nave está nos ajudando, de uma forma ou de outra. Às vezes é reconfortante. Às vezes é assustador pensar no que os alienígenas estão fazendo por nós enquanto nós nos destruímos. A grama do vizinho é sempre mais verde.
Ninguém viu a nave chegar, ela apenas surgiu. Talvez estivesse ali desde os primórdios do mundo mas invisível, incorpóreo. A manhã de 25 de setembro de 2020. As primeiras imagens a se espalharem pelo mundo vieram de um drone. O fotógrafo Adilson de Oliveira estava perto, filmando um documentário. Bom, de uma forma ou de outra acabou conseguindo seu documentário. As imagens mostravam um grande objeto negro com detalhes brancos. Não era maciço, era possível ver onde as placas foram soldadas. Não se parecia em nada com um prédio. Lembrava bastante as naves de qualquer filme de sci–fi. Até hoje não sabemos do que foi feito. Parecia metal. Ele não flutuava, tocava o chão com delicadeza suficiente para não fazer nenhuma ondulação na terra vermelha, como se pesasse um grama.
As políticas do Brasil não foram as melhores. Prenderam em quarentena todas as pessoas no raio de cinco quilômetros da nave − se é que podemos chamar de nave −, as bombas foram o suficiente para levantar poeira e matar qualquer coisa que estivesse a dez quilômetros. Esse foi apenas o ataque nacional. Os Estados Unidos tentaram, cinco bombas, assim como a Rússia, China e boa parte da Europa.
Assinaram algum tratado de estudo científico. É engraçado quando paramos para pensar na flora e fauna que foram dizimadas antes que resolvessem preservar a integridade do mundo com um rabisco em um pedaço de papel. Não sei quem propôs a criação da União, mas tenho um bom palpite. Não demorou muito para os telões serem espalhados pelas principais capitais do Brasil e algumas pessoas com uniformes brancos surgirem falando da união das nações em prol da humanidade e pipipipopopo.
Um deserto se formou ao redor do objeto. É uma imagem aterradora e solitária, não que o resto do país também não evoque a mesma sensação. Nenhuma árvore ou restos de construções. Só uma grande faixa de terra vermelha cercando o grande bloco negro e branco que zomba de nossa humanidade. Às vezes uma nuvem de areia se forma, dança por alguns quilômetros e desaparece. Gosto de pensar que é obra deles, uma forma de brincarem conosco.
Faz dois anos. Dois anos sem nenhum contato com a nave. Dois anos que não durmo direito, temendo um ataque, que surjam mais ao acordar ou que a União resolva parar de fingir amizade conosco. Podem surgir sobre minha casa, sobre minha cidade. Muitas crianças nasceram no mundo pós nave. Elas não conhecerão a paz das discussões sobre sermos indiferentes perante o universo, apenas poeira de estrelas. Já nasceram sabendo que não são nada para o cosmos e menos ainda para os outros países.
Alguns brasileiros tentam chegar perto da nave. São alvejados pelos casacas brancas que vivem nos acampamentos no entorno. As imagens são transmitidas nas telas por todo o país. Um homem da União aparece no final, pedindo para que nos afastemos do objeto. Muito ajuda quem não atrapalha, concluiu ele.
Não sei mais se meu país é meu de fato. Ando pela rua e encontro pessoas bem vestidas com suas roupas brancas e a bandeira da União costurada no ombro, falando línguas que não conheço. Os nativos daqui evitam a rua, aqui no Rio virou comum desaparecer sem deixar nada além de uma amarga lembrança para trás. Se você some, seus amigos e familiares só podem lembrar de você; qualquer conversa sobre o assunto pode ser considerada um complô.
Boa parte dos casacas brancas conversam em uma língua que não conheço. Já tentei imitar os sons, mas parecem impossíveis para uma língua desacostumada. Estamos sendo expulsos pouco a pouco de nosso próprio território. Não pelo ídolo alienígena, mas pelos cientistas, bases militares da União e empresas de tecnologia. Eles me tratam como animal. Sinto seus olhares de superioridade ao verem meu sotaque, por isso evito falar.
Vivo em um pequeno conjunto habitacional, ele existia antes da União chegar. Demoliram quase um bairro inteiro para construir uma base de pesquisa. Sei que não é pesquisa. Helicópteros chegam e vão embora com tanta frequência que parece um estacionamento rotativo. Uma bandeira branca com um traço negro na horizontal foi espetada no muro que cerca a base. Não posso olhar muito. Tenho medo de ser morto. Mesmo assim, toda noite apago as luzes de casa e vou até a janela.
Vejo tropas correndo uniformizadas para cima e para baixo, estão treinando. Por alguns instantes parecem correr acima do limite humano. Carros vão de um lado pro outro carregando pessoas metidas dentro de ternos brancos. Consigo sentir o cheiro de carne assada, mas pode ser coisa da minha cabeça. Conto vinte soldados vigiando o muro. Não demora muito para um jipe entrar pelos portões e estacionar em frente ao prédio principal. Quatro soldados vão ao seu encontro e tiram do banco de trás do carro uma pessoa encapuzada de mãos algemadas. Eles a arrastam para o prédio principal. Isso se tornou uma visão cada vez mais comum.
Fecho a cortina quando um deles vira a cabeça em minha direção. Sei que não me viu, meu quarto é longe e escuro o suficiente, mas a União não precisa de provas, basta uma leve impressão para o em prol da humanidade fazer efeito.
Queria me mudar, não sei, morar na floresta parecia uma ideia interessante.
Deito em meu colchão e volto a comer minha ração. Tem gosto de trigo molhado e a consistência é de uma pizza bem mastigada e vomitada. As pessoas nas ruas sussurram que devemos ser gratos, em outros lugares no mundo as coisas estão bem piores. Falta comida em toda a América Latina, com exceção do Brasil. O que chega até nós, pessoas comuns, é essa ração. Três latas por dia. Tudo que os mercados vendiam era entregue diretamente nos pontos de abastecimento militar e de lá eles manejam até outras bases mais distantes e centros de pesquisa.
Existe a opção de comer nos refeitórios espalhados pela cidade. Nunca estive em uma prisão, mas desconfio que seja parecido. Soldados da União colam as costas nas paredes e te observam comendo, como versões escrotas de estátuas gregas. Grandes mesas se espalham pelo salão, as luzes são tão fortes que distorcem qualquer cor deixando a mais branca. O som de talheres raspando o fundo dos pratos consegue suprimir o barulho das conversas. Você pode repetir uma vez mas é extremamente deprimente, prefiro comer pouco enquanto me auto enclausuro do que ser enclausurado pelos outros.
Em prol da humanidade.
Fecho os olhos. Não sei se cheguei a sonhar ou se fiquei de olhos fechados até o dia nascer.
Uma sirene toca no fim da minha rua. Dizem que é para acertarmos os relógios mas eu sei que é para nos acordar. Devemos ser trabalhadores exemplares, em prol da humanidade, é claro. Eles implementam coisas pequenas no seu dia a dia, quando você perceber, vai ser tarde demais. Pelo menos a nave não tomou nossas cidades.
O caminho até o trabalho não é muito curto, vou andando para economizar e chego lá em uma hora. Nos melhores dias consigo fazer o trajeto em quarenta minutos. Faz um tempo que não tenho um bom dia. Nossos salários foram congelados desde o evento. Vieram com o papo de “focar nossas riquezas na proteção interna. Asseguramos que os preços não vão aumentar. Mas por enquanto, precisamos lidar com o objeto em nosso território”. A pior parte é que eu acho que falavam sério. Pelo menos em uma parte ou outra. Em um ano surgiu a moeda da União. Pedaços de plástico coloridos funcionam como cartões de crédito. Tenho um verde, é só passar em frente às máquinas da União para pagar. Papel é poluente, disse a União. Pelo menos as latas de ração são de graça. Sobra um pouco de dinheiro para uma firula ou duas. O que significa comprar uma roupa ou uma sacola de pregos para algum reparo. Não temos muitas firulas.
Caminho pela calçada, afundando meus pés nas poças, essa é a única forma de caminhar pelas calçadas. Vejo bancas de jornais, são poucas as manchetes em inglês, mas existem. Minha mão coça para quebrar o vidro e rasgar página por página. Dois soldados da União estão lendo, suas auras afastam qualquer civil. Me aproximo deles, sinto o coração acelerar, parece que estou fazendo algo errado. Quero cuspir neles, mas só olho para as manchetes. Ombro a ombro com os soldados. Me pergunto se foram eles que estavam batendo no homem perto do meu trabalho.
Parece obrigação de toda primeira página do jornal ter a imagem da nave. Não me dou ao trabalho de ler o que dizem. Quando é algo realmente importante aparece nos monitores instalados pela cidade. Quando não, vai para os jornais impressos.
Fecho o zíper do casaco e me afasto dos dois. Olho para trás em um gesto de desafio quase infantil, eles estão indo na direção contrária. Desaparecendo entre a multidão. O vento é gelado e traz consigo um cheiro de gasolina. Não existem postos nesse bairro, algum maluco deve ter deixado a gasolina acabar no meio da rua e quando foi por derramou um pouco do galão. Não dou uma semana para a União sumir com ele em prol da humanidade.
Paro em frente a faixa, mais como uma forma de reviver o costume, do que para segurança. O fluxo de carros não é mais o mesmo. As pessoas passam por mim, grande parte carregam guarda-chuvas fechados e pendurados no braço. Por um momento, sinto-me uma pedra no meio do rio, e a forma como elas abrem espaço, passam por mim e se encontram novamente à frente me ajuda a recobrar um pouco da significância de estar vivo.
Sou um problema grande o bastante para que elas desviem de mim.
Gostei da frase. Me imagino voando, vestindo uma capa, com os olhos incandescentes dizendo para a multidão.
Abaixo a cabeça e atravesso a rua.
O cheiro de gasolina fica mais forte. Me envolve como se eu estivesse sobre o reservatório de um posto. Por um momento tenho medo de pegar fogo e olho para baixo para ter certeza de onde estou pisando. Dois soldados passam correndo, os mesmos que estavam na banca de jornal. Um resvala o ombro no meu, cambaleio um pouco. Vejo a ponta dos fuzis balançando perto de suas cinturas. Os mais atentos abrem espaço, os dispersos são empurrados e jogados no chão. Os dois parecem uma locomotiva de tão maciços.
Testo o ar. O cheiro de gasolina é mais forte na direção que foram e é para lá que sigo. Sim, não sei muito o que estou pensando. Não demora muito para eu precisar cortar uma multidão que corre na direção contrária. Demora menos ainda para eu conseguir notar a bola flamejante no meio da rua.
O fogo se espalha em uma poça até chegar na calçada. Meu rosto arde com o calor, meus olhos lacrimejam. Os soldados gritam em sua própria língua. Parecem aterrorizados com o fogo.
Me aproximo mais.
Meu coração está tão agitado quanto o das pessoas que correm e se aglomeram em torno do fogaréu. Vejo que é um blindado do Exército. Labaredas saem de dentro das janelas e se lançam aos céus, virando nuvens negras. O cheiro de gasolina está impregnado em meu nariz. Minhas mãos estão tremendo.
Vejo três homens dentro do carro. Não se movem, as chamas dançam de forma que suas silhuetas se tornam invisíveis e extremamente expostas em alguns momentos. Seus uniformes da União não estão queimando.
Mais soldados chegam, parecem tomar uma distância segura do fogo.
Penso no que pode ser aquilo. A primeira coisa que passa na cabeça de todos os que fogem é: um ataque alienígena, talvez até mesmo na cabeça dos que estão olhando a cena. Os aliens não usariam gasolina, pelo menos eu acho que não.
Tento resistir mas não consigo. Estou sorrindo. Alguém está fazendo alguma coisa. Não sei exatamente quando esse país deixou de ser meu, mas sinto que voltará a ser, em breve.
Admiro o fogo consumindo o blindado, ou pelo menos o que o blindado permite que seja consumido. Soldados trazem extintores, mas parecem receosos em se aproximar. Sinto um comichão, outra coisa está prestes a acontecer. Algo maior.
Vejo crianças apavoradas agarradas ao pescoço das mães. Procuro alguém calmo, alguém que pareça saber o que virá em seguida. Só encontro pessoas aterrorizadas. O que mais tem são adolescentes. Eles não entendem a gravidade e importância do que estão vendo. Esse carro vai entrar para os livros de história…
Ouço um barulho cortar os céus com ferocidade.
São fogos de artificio.
O rojão sobe entre as nuvens, lançando faíscas verdes e machucando meus ouvidos. Faz um bom tempo que não presencio um desses. Minha barriga borbulha. As pessoas começam a correr com as crianças no colo. Alguns se atiram no chão, cobrindo a cabeça com as mãos ou com as bolsas. Continuei parado, admirando as faíscas que cortavam o céu bem em cima de mim.
Vejo a luz antes de ouvir a explosão. As faíscas verdes se espalham pelo céu como galhos de uma árvore, desenham uma cúpula e se apagam.
Os soldados gritam para os comunicadores presos no ombro, correm de um lado ao outro feito baratas tontas. Estão procurando os responsáveis. Um deles passa por mim, por pouco não coloquei o pé na frente. Outro Jipe faz uma curva fechada, jogando algumas pessoas para o alto, e seguindo na direção das faíscas.
Basta ele fazer a curva para outro ascender aos céus, vindo da direção contrária. Sua luz é vermelha. É seguido por outros dois vindos de direções opostas. Os casacas brancas não sabem o que fazer. Todas as compras são monitoradas, todas as esquinas
têm câmeras, qualquer vizinho pode te entregar para a União. Tento criar algum plano em minha cabeça, imaginar de onde os fogos vieram. Nem sei como se constrói isso.
Abaixo os olhos do espetáculo luminoso sobre minha cabeça e me deparo com um fuzil, na outra ponta está uma garota de olhos azuis e cabelos amarelos. Ela grita palavras que não entendo. Sinto meu rosto arder, minhas pernas estão bambas. Não sei o que diz, mas sei o que ela está pedindo. Olho em volta e, além dos soldados, sou o único de pé no cruzamento. Me abaixo, colando o rosto no chão. Não posso me dar muito ao luxo de escolher. A garota coloca o joelho nas minhas costas, ela é leve mas eu não pratico exercícios, sinto minhas costelas quase quebrarem com a pressão. Penso que dei sorte, se fosse mais velha, provavelmente eu já estaria morto.
Algo estoura do nosso lado. O barulho faz meu corpo todo vibrar. Nunca deitei num trilho de trem, mas imagino que a sensação seja parecida. Viro a cabeça, sinto meu pescoço protestar e vejo um casaca branca correndo com a roupa em chamas. Ele corre para longe de outro blindado em chamas. Sinto o joelho em minhas costas afrouxar até sair por completo. Não é uma boa levantar. Minha vigia começa a correr até o meio da rua, não olha para mim, seus olhos estão fixos em algo além da esquina.
Me arrasto até o banco de madeira e cimento atrás de mim.
Os casacas brancas apontam as armas em direção a nova explosão e abrem fogo. Consigo ouvir o som das balas atingindo o metal, suas miras estão assustadoramente altas. Me pergunto no que estão atirando. Talvez uma nave pequena?
Não vejo nenhum outro civil na rua. O corpo do soldado está estirado no chão, perdido em algum lugar entre as chamas que o envolvem, ele não grita nem se move. Mal vejo seus membros, na verdade. Apenas o uniforme.
Ouço o motor de mais blindados chegando. É como uma orquestra da destruição. Queria ver no que atiram, mas precisaria entrar na linha de fogo. Mais casacas brancas são vomitados para fora dos carros e se unem aos que já atiram.
Em prol da humanidade.
Uma bala despedaça o banco onde me escondo e resvala a alguns centímetros da minha cabeça. Ciscos voam no meu olho direito. Vejo uma silhueta branca do outro lado da rua, vindo em minha direção.
Merda.
Mas é óbvio que iam me confundir com um terrorista. Por que não, não é mesmo? Penso em levantar as mãos e me render, mas em um segundo repenso a estratégia e começo a correr em ziguezague. Anos atrás vi em um programa de TV que isso funcionava. Tenho quase certeza de que estou gritando por socorro. Corro pelo caminho que me levou até ali. Se eu virar à esquerda na banca, vou encontrar um parquinho com algumas árvores e cinco saídas. Não sei se o complexo de prédios ainda existe, deve existir. Merda, eu não devia sair mais de casa. É minha melhor opção, mesmo com as câmeras de esquina e as que existem sob as telas. Acabo de me tornar um terrorista. Não está sendo tão divertido quanto pensei que seria.
Para lá eu vou enquanto balas furiosas agitam o ar ao meu redor.
Será que fui baleado e não senti?
A primeira tela que encontro está onde costumava ficar o letreiro da mercearia do Jorge. A tela pisca em vermelho mandando que nos afastemos da rua. Me pergunto quem iria parar para ler o que ela diz numa hora dessas. Me acho extremamente idiota logo em seguida.
Com a visão periférica, vejo a parede à minha esquerda ser esmigalhada por uma bala. Por algum motivo aquilo me fez perder o equilíbrio, talvez tenha sido baleado.
Apoio as mãos no chão. Meu olho direito está latejando, imagino grandes pedaços de concreto entrando cada vez mais fundo na pupila. Sinto minha cabeça começar a girar sobre os ombros, tento recuperar o equilíbrio mas já é tarde demais.
Rolo pelo chão. Meu braço direito vira em um ângulo que não devia, explode em dor e logo em seguida paro de senti-lo. Talvez porque a urgência do meu rosto arrastando no asfalto tenha tomado toda a minha atenção.
Dou uma cambalhota, da forma mais errada possível, paro com a barriga para cima. Sinto o ar entrando nos machucados em meu rosto, o gosto de sangue e chão tomam conta de minha boca.
Minha cabeça está bamba, parece desparafusada. Vejo o soldado se aproximar devagar, ele é pouco mais que um borrão. Tento me levantar mas a única resposta que recebo é uma pontada de dor no braço direito.
Queria ter feito algo mais útil com o tempo que tive. Feito algo ao invés de abaixar a cabeça para eles e xingar em silêncio, na segurança de casa. Devia ter atingido a União de alguma forma. Não me conformo que meu último ato na Terra seja chorar.
Merda! Por que eu não saí correndo igual todo mundo?!
Xingo o soldado. Sei que ele não vai entender, mas inflo meus pulmões e solto todo o ar em uma cascata de ofensas, algumas são até infantis. São as únicas armas que tenho, talvez se ele chegar muito perto eu consiga mordê-lo.
Ele se aproxima. Está a um passo de mim.
Meu coração acelera, talvez eu infarte antes que ele me mate. Chego a torcer para isso acontecer, uma das poucas coisas que posso tirar da União. Grito para que ele se afaste. Sua imagem é tão borrada quanto assustadora.
O homem encosta a ponta do fuzil em meu peito. Sua boca se enrola em palavras.
Me preparo para morrer a qualquer momento. Encaixa o pé por baixo da minha costela e me vira. Meu rosto volta a tocar o chão. Ele puxa minhas mãos para trás. Meu braço dói tanto que parece estar sendo arrancado. O soldado está me algemando.
Ser prisioneiro da União não estava em meus planos. Pelo menos assim posso incomodá-los, já que não sei de nada sobre a resistência.
Será que eles se chamam de resistência?
Ele me coloca de pé.
O soldado me leva em direção aos outros. Não ouço mais o barulho de tiros. Fico triste, pois imagino o pior cenário para a resistência. Sua mão bate em meu braço quebrado. Não sei se de propósito ou não.
Ouço um estampido. A mão que me guiava afrouxa e solta. Meu braço está mais leve. Olho para o lado e vejo o soldado levantando seu fuzil. Penso que vai atirar em mim, mas ele fica de costas e abre fogo em direção ao parquinho. Ouço tiros vindos daquela direção, mas não ouço nenhum estourar nas paredes atrás de mim.
Significa que estão parando no soldado, não é?
Ele levanta o fuzil e começa a atirar de volta, como se nada tivesse acontecido.
Começo a correr, o único lugar onde posso me esconder é atrás do poste. Merda. Olho para o casaca branca que me levava, ele não busca abrigo. Continua firme atirando e andando até o parquinho. Algo emana de sua roupa. Pequenos pontos luminosos e leitosos surgem rapidamente e desaparecem.
O que é isso?
− Se abaixa. – diz uma voz a alguns metros de mim.
É de um homem. Ele veste um sobretudo, muito parecido com o usado pelos oficiais da União, só que o seu é tingido de negro. Posso ver os bordados no ombro, onde as insígnias costumavam ficar. Grandes dreads balançam em sua cabeça. Quando agacha, eles roçam a calçada.
− Se abaixa, cara.
Obedeço. Não acredito que é a resistência. Eles, em carne, osso e… Percebo que ele carrega uma garrafa de vidro, um pedaço de pano saindo pelo gargalo. O cheiro de gasolina é forte.
− Escolhe. – diz ele tirando um isqueiro do bolso interno. – Na cabeça ou no lombo?
− É… Cabeça…?
− Muito pequeno – ele tem um sorriso tranquilizante – Tem que… – ele acendeu o pano. Eu quis correr, mas minhas mãos ainda estavam algemadas. Ele arremessou e usou o sobretudo para nos proteger – …ser num alvo grande.
Ouço uma explosão.
− Acho que tu vai gostar de ver isso, mano.
Tento imaginar o que seria tão divertido. Acabar com a União é algo que soa divertido por si só, é claro, mas ele parece tão… tão despreocupado, como se fosse uma equação exata. Guerra não é exata. Eu acho.
Eu olho.
O soldado está ardendo em chamas. Não estão tão intensas a ponto de cobri-lo por inteiro. Foi um belo arremesso. As labaredas pareciam um mar agitado lutando para engolir uma rocha. Consigo sentir o calor daqui.
− Olha bem, mano, olha bem. – disse o homem, pegando o revolver debaixo do ombro.
O soldado se contorce. Seu rosto muda de cor entre as chamas. Se torna azul, seus olhos viram dois buracos escuros. Sua pele murcha e seca. Imagino que isso seja normal com pessoas pegando fogo, mas não sabia que era um processo tão rápido.
O soldado parece encolher até desaparecer dentro do uniforme.
− É rápido assim? – pergunto, minha voz é um misto de dor e êxtase.
− Gasolina. Fogo. As únicas coisas que destroem os coletes desse lagartos.
− La-Lagartos…?
Ele me lança um olhar de pena. Não uma pena do tipo “Ah, tadinho. Todo estropiado no chão.” Era mais algo do tipo “Tem tanta coisa que você não sabe, mano”.
− Explicação rápida e genérica, mano. Eles – o homem aponta para o homem em chamas. Agora ele não passa de uma massa flamejante sobre a rua. – Não são daqui. São lá de cima. Do espaço.
− Peraí…
− Sim. Aliens. ETs. Chupa…Já entendeu, né, mano?
Não é possível. Bom, não é tão impossível assim. Me sinto idiota. Lembro das propagandas mundiais em prol da criação da União. Lembro dos acordos assinados. Todos foram criados por homens. Pessoas aqui da terra. Elas são os verdadeiros monstros. Em dois anos nada saiu da nave, nem foi visto nos seus arredores. A mídia teria noticiado caso houvesse algum contato, afinal… A União controla a mídia. Eles não precisam ter chegado com a nave, podem estar aqui muito antes. Eles olham para os civis como se fossemos baratas. Talvez, para eles, não passemos disso mesmo. Muitos soldados conversam entre si em uma língua que não é nem inglês e não soa com nada que eu já tenha conhecido.
Merda. Merda. Merda.
− Me chamo Zé. – disse ele estendendo a mão para mim.
− Eu tô preso. Até apertaria sua mão mas…
− Tem medo de tiro, mano?
Penso um pouco. Tenho medo de muitas coisas, principalmente ser baleado, mas do tiro em si não.
− Não…?
Zé fica de pé. É bem alto, seus dreads batem nos joelhos. Seus músculos parecem tão maciços quanto uma parede. Ele segura meu pulso, ouço um tiro e me sobressalto. Sinto o ar quente vindo do cano da pistola subir pelas minhas costas e a liberdade está em meus braços novamente.
− Obrigado. – o movimento com o ombro me faz curvar de dor. A pior parte é que não posso ir a um hospital. Não agora. As câmeras me viram fugir de um soldado e estou sendo gravado nesse exato momento, conversando com um dos revolucionários. Meu braço vai calcificar errado, terei sorte se conseguir movê-lo sem dor novamente. – Eduardo.
Zé faz menção de me cumprimentar mas repara em meu braço quebrado e para.
− Quem é esse? – diz uma mulher atrás de mim.
Me deparo com uma menina. Deve ter uns 18 anos, talvez um pouco mais. Ela carrega um grande fuzil e veste o mesmo sobretudo preto de Zé, o dela está completamente abotoado e as insígnias não foram arrancadas.
− Eduardo. – diz Zé. – Prisioneiro do… – ele olha pro corpo em chamas. Está começando a apagar. – Bom, do lagartão ali. Novo soldado da resistência.
Eles falam resistência.
A menina revira os olhos e suspira.
− Tira ele daqui. Vou ver se tem mais civil perto.
− Duvido bastante, mas tá bom, mano.
A garota se abaixa junto ao poste que usei como esconderijo, levanta o fuzil e vasculha o lugar através da mira. Ela puxa o gatilho mas não vejo nenhum alvo na outra ponta.
− Duardo. Vem. Junto.
− Que?
− Tô de zueira. Vem. Isso aqui tudo vai explodir.
Zé começa a andar em direção ao parquinho. Seus olhos estão atentos a qualquer movimento hostil. Ele carrega só um revólver, mas algo me diz que aquilo não é sua principal defesa.
− Queria ver o esmaga lagarto? Queria, mas…
Não sei se ele falou isso para mim, suspeito que não…
− Zé – pergunto enquanto ele salta a cerca do parquinho, eu dou a volta. – Você falou em explodir…
− Com todas as letras.
− É explodir explodir? Tipo… a rua inteira?
Ele ri enquanto salta a outra cerca.
− Rua? Tamo falando do bairro inteiro. A Má tava espalhando umas células de gasolina. Pontos estratégicos. Estamos trazendo o maior número possível de lagartos para o mesmo ponto e então… KABUM! Deu sorte que o epicentro vai ser na praça, mano.
Não sei se devo saber tanta coisa assim. Talvez eles queiram que as pessoas saibam o que a União é.
− Eu moro nesse bairro. – digo sem pensar.
− Você e outras… Sei lá, dez, quinze mil. Acontece que vocês, a gente, os humanos. – continuou Zé apontando uma esquina a direita. Fomos por ela. – Estamos muito acomodados. A gente tá dando uma agitada. Resistindo, mano. Sabe a melhor parte?
− Não…?
− Tamo contratando. Pagamos com trabalho duro, possíveis dilacerações, às vezes uma morte dolorosa, mas prometemos alguns Lagartos para matar e um bônus de libertação mundial. Estamos discutindo sobre esse bônus ainda.
Me sinto levemente desconfortável com a leveza com que Zé descreve as coisas. Pouco sabemos do que acontece em outras partes da cidade, sabemos menos ainda o que acontece fora delas. Todas as informações são controladas pela União, assim como as fronteiras. É preciso ter uma desculpa muito boa para sair de sua cidade e outra melhor ainda para não desaparecer em prol da humanidade quando voltar.
Não acho que tenho muita opção agora. Minha casa vai explodir, minha cama, minhas roupas, minhas latas de ração, minha cortina… Pelo menos vou fazer algo em prol da humanidade, dessa vez de verdade.
Seguimos por uma rua ladeada por casas coloridas, pequenas e espremidas. Todas com os portões arreganhados. Me pergunto como fizeram para evacuar esse bairro. As nuvens começam a se mover, deixando um ou dois raios de sol brilharem no asfalto.
− Merda – diz Zé, acho que foi a coisa mais séria que ouvi dizer desde que…bom, desde que o conheci. – Vai pra trás de mim, mano.
Obedeço. Zé é um homem alto e forte. Me sinto mais coberto atrás dele do que me senti atrás do poste. Ouço falas emboladas mais a frente. Sei que é a União. Meu olho arde. Meu rosto inteiro arde quando o suor toca as feridas. Devo ser digno de um lixão.
Olho por cima do braço de Zé. Dois soldados. Eles apontam fuzis em nossa direção. Acho que vou levar um tiro na perna. Zé tira duas pedrinhas do bolso e arremessa. Vejo os mesmos pontos luminosos que vi no outro que foi incendiado.
Seus uniformes….
− Imaginei. – diz Zé. Dessa vez tenho certeza de que é para si. – Quando eu disser corre, tu corre pra dentro daquele portão, mano. Tendeu?
Confirmo com a cabeça. Com certeza vou tomar um tiro na perna.
− Tá aí, mano? – sua voz é calma. Calma até demais. Ele deve ter um lança mísseis em algum lugar do sobretudo.
− Tô. Por favor, não me deixe morrer – por que eu disse isso?
− Segura na minha roupa e anda comigo até eu falar pra correr, mano e vai tá suave.
Abro caminho entre seu cabelo e seguro em sua roupa. Zé anda devagar. Parece um continente se afastando do outro. Os tiros começam. Tô morto. Sinto o sobretudo de Zé vibrar em minhas mãos, talvez seja eu tremendo. As balas passam por nós, passam bem perto. Vejo as luzes brancas e leitosas surgindo de Zé.
As roupas da União param balas.
Porcaria, como eu preciso entrar pra resistência.
Estamos tão próximos que consigo ouvir o som dos gatilhos sendo apertados. Sei que é coisa da minha cabeça, as armas fazem tanto barulho que me sinto na Sapucaí. Penso que, como estou mais perto deles, vou ser um alvo fácil quando precisar correr. Pelo menos não quebrei uma perna.
− Tá pronto? – grita Zé sobre o ombro. Me incomodo com a calma em sua voz.
− Aham.
Ele passa a segurar o revólver pelo cano e levanta o braço, já o vi fazer esse movimento.
− Corre.
Eu corro até o portão mais próximo. Acho que vou tropeçar no meio do caminho ou levar um tiro nas costas mas não. Me escondo atrás do muro.
Ouço os gritos embolados dos soldados da União. Ouço o som do que parece ser metal contra ossos. Ouço uma risada levemente assustadora e familiar. Espero sentir o calor do fogo que Zé deve atear aos dois, mas não.
Nada.
Não sei quanto tempo leva. Podem ter passado dois ou dez minutos . O silêncio cai sobre mim e a rua. Zé disse que ela iria explodir, talvez não dê tempo de sair. Será que vão lembrar de mim? Ou pelo menos vou contar com um mártir da revolução?
Qual é, nem eu lembro de mim às vezes.
− Mano…? Tu tá chorando?
Zé está com metade do corpo para dentro do portão, respingos azuis se misturam ao suor em sua testa. Suas mãos também estão manchadas e salpicadas de azul, como se as tivesse mergulhado dentro de gelatina fresca. Esfrego o olho esquerdo, espalhando lágrimas pelo rosto e sangue nas costas da mão.
Zé me ajuda a levantar.
Os dois corpos estão amassados. Não por estarem mortos – embora isso também tenha sua parcela de culpa – mas as criaturas são naturalmente amassadas… Parecem humanos, pelo menos tem quatro membros. A pele é azulada e enrugada e não parece muito pele. Está mais para uma escama bem fina. Suas cabeças são longas e retas. Zé começa a despir o da direita. Quero ser proativo e vou no da esquerda.
Os lagartos fedem. Vejo pequenas crateras em seu crânio. Olho rapidamente para Zé, ele está assobiando enquanto puxa uma das mangas do defunto.
O cara acabou com dois deles. Sozinho. Talvez eles sejam mais frágeis do que eu esperava, afinal, tem trajes capazes de parar balas. Mesmo assim, o que Zé fez foi notável. Meu respeito por ele e pela rebelião quintuplicou.
− Elas vivem na nave? – pergunto. Logo em seguida percebo que despir um corpo com o braço quebrado é uma das coisas mais difíceis e dolorosas que já fiz na vida.
− Não, mano. O Zé, não eu, o Zé do laboratório. Um sujeito que parece até contigo, só que com cabelo. Acredita que sejam de outra raça.
− Outra…?
− É, mano. Doidera, né? Devem ter uns milhões de bichos diferentes vivendo por aí e aqui.
Estremeço com a ideia.
Ele vem e termina de despir o segundo corpo. Fico aliviado por isso.
− Aparentemente – ele continua enquanto voltamos a correr −, tem umas quatro raças diferentes dentro da União. Não fazemos ideia do que tem dentro daquela nave, mas a gente acredita que a União não gosta nenhum pouco.
Afundo em pensamentos. Me sinto pequeno, inútil. Agora, mais do que nunca, sinto falta de me sentir solitário. Pelo menos quatro raças diferentes ocupam o meu mundo. É difícil não se sentir sufocado com essa informação.
Merda, acho que tô chorando denovo.
Ao dobrar uma esquina, começo a ver pessoas. Estão assustadas, muitas choram, da mais velha à mais nova. Todas carregam um medo em seus olhos. O homem gigante coberto de sangue alienígena não ameniza em nada a situação.
Zé entra na multidão, que se torna mais densa conforme avançamos, não sei se devo segui-lo mas é o que faço. Começo a ver blindados e mais pessoas vestindo sobretudo pretos. Elas portam armas que não reconheço. O cheiro de gasolina é forte. Bem forte.
Vejo soldados da resistência andando de um lado ao outro sobre os tetos dos blindados. Como um grupo tão grande conseguiu ficar escondido por tanto tempo? Não. Não ficaram escondidos. A União que escondia sua existência. Eles davam esperança. Esperança é uma semente poderosa para os oprimidos.
− Tudo pronto, mano? – ouço Zé dizer.
Pensando que é comigo, abro a boca para responder, mas uma mulher de cabelo curto e loiro, com traços muito bem marcados responde.
− Tudo. Vamos colocar o povo nos carros e ir pro barco logo.
Ela me vê à sombra de Zé e acena com a cabeça como se eu fosse uma criança. A mulher entra num blindado. Meu companheiro abre a porta de trás, senta no banco e escorrega até o outro lado. Acena com a cabeça para que eu entre.
E assim faço.
− É, mano. – diz Zé esfregando as mãos na roupa − Bem vindo a um mundo um tiquinho maior do que tu tava acostumado.